Em certo dia de Janeiro dos seus
quarenta e cinco anos, a um sábado
à tarde, sentado de perna traçada no
escritório, Alberto Inácio reparou pela
primeira vez no quadro que tinha
diante de si. Chamava-se "Cão que
Não Ladra" e declarava influências de
grande parte dos pintores e
correntes do último século e meio.
Este quadro estava com Alberto
desde o primeiro casamento,
seguindo-o pelas paredes das várias
casas em que vivera. Era
"abstracto".
O primeiro casamento passara-se
todo em três assoalhadas. O quadro
estava na parede da sala, prenda dos
amigos, e presenciara muito jantar
silencioso entre cônjuges; escapara
à jarra toda cinematograficamente
atirada pela esposa ao saber que
Alberto iniciara já uma segunda
ligação, num outro apartamento, um
pouco mais a Oeste, na mesma
cidade. Aí, "Cão que Não Ladra", por
falta de espaço e distracção do
proprietário, pendurou-se na húmida
marquise fechada a alumínio, a olhar
para as traseiras de outros prédios.
Mais tarde, no segundo casamento,
com uma recém-licenciada em
Biologia que abandonou tudo para se
dedicar a um par de gémeos que lhe
nascera por acaso, o quadro fora
muito visto, mas pouco comentado,
no patamar da entrada, encimando
um liminar arranjo de telefone-de-
teclas/jarra com túlipas de pano/
fotografia dos noivos no dia do
casamento, sobre uma mesinha
envernizada de pernas arqueadas
tais as do vaqueiro que se visse
obrigado, de chapéu de abas e
chicote em punho, a palmilhar os
campos em busca da montada. Aqui
se deixavam também, pelas sete da
tarde de todos os dias, as chaves de
Alberto Inácio, do carro, do alarme do
carro ,da casa e da casa-de-campo
que fora herança desleixada da
mulher, tudo preso num anel de aço
inoxidável, e culminando numa bola
de borracha vermelha eriçada de
múltiplos tentáculos muito finos. Esta
era uma bola em que a mulher de
Alberto não conseguia tocar,
pegando nas chaves com todo o
cuidado de dois dedos.
Terminando este casamento por
razões que nunca se chegaram a
esclarecer, de todas as discussões
que se geraram entre ambos, o
debate sobre o destino do quadro foi,
sem dúvida, o mais pacífico. Alberto
levou-o consigo para um outro andar,
em alguns aspectos bastante melhor
do que o anterior, pois tinha muito sol
e um quarto suplementar, onde
ficavam os gémeos de quinze em
quinze dias fazendo de escritório no
resto do tempo.
A terceira mulher de Alberto Inácio
era, até à data, a de mais fácil
convívio. Érnia tinha uma disposição
risonha e extrovertida, falava alto,
acordava a cantar, achava graça a
tudo o que ele dizia. Gostava de
sexo, estava sempre pronta para as
novidades, bebia com moderação,
fumava, viajava. Para cúmulo, tinha
fortuna própria, gastava o tempo em
horário flexível numa loja de sofás
que pertencia à família e não
precisava de crianças. Quando os
gémeos iam passar o fim-de-
semana, ela observava-os de uma
distância segura, fixa num grande
sorriso mudo.
A felicidade desta mulher cedo
começou a agastar o Alberto. Érnia
não sabia distinguir o fim-de-semana
dos outros dias. Era sempre festa,
uma cara de riso. Ele usou todos os
pretextos para a rebaixar, muitas
vezes em público, aludindo a uma
sua suposta costela brasileira e a
tudo ela respondia simpática e
compreensiva, dando ao marido a
noção cada vez mais absoluta de
que lhe era indiferente tudo o que ele
dissesse. Alberto passou a fechar-se
no escritório nos sábados em que os
gémeos não vinham e a precipitar-se
para o computador, fingindo-se
ocupado, de cada vez que ouvia os
passos dela no corredor. Mas Érnia
entrava, abria os cortinados e a
janela para deixar sair o fumo,
mostrava compaixão pelo excesso
de trabalho que a empresa exigia,
fazia-lhe uma festa no cabelo e ele
tinha de reprimir um movimento de
repulsa. Pouco depois Érnia saía
porta fora para se encontrar com os
amigos e, como um miúdo, Alberto
corria para a sala a ver na televisão
o basquete da NBA.
Nos últimos meses procurara, de
todas as formas, destruir a felicidade
inexpugnável desta mulher.
Irritavam-no a forma como
pronunciava os erres, que vinha do
facto de ser ainda um bocado alemã,
os sapatos rasos de tamanho
generoso, que facilmente
descambavam e o modo como
levava a mão à gola do casaco,
fazendo-lhe festas. Havia ali
comparações muito desmerecedoras
para a Érnia. Mas nada parecia tocá-
la.
Nesta tarde, fechado no escritório a
olhar para a parede, Alberto reparara
pela primeira vez no quadro. Tivera
um choque de reconhecimento e
depois um pânico que parecera
deslocar todos os objectos. Deu-se
uma torção do espaço, como um
tremor de terra instantâneo, e depois
um rasgão, um raio invisível - e o
computador, o candeeiro de pé, o
cinzeiro, o relógio de prata pousado
no tampo da secretária, o maço de
folhas eternamente em branco, todos
eles se transmutaram: eram as suas
próprias coisas, mas inteiramente
alheias.
A psicóloga da empresa, anafada,
cinquentona, olhava-o por cima das
meias-lentes, com a placidez dos
psicólogos, enquanto Alberto Inácio
descrevia essa e outras
experiências. Na cabeleira dela,
volumosa e grisalha, presa numa
grande variedade de ganchos, de
travessas e de pequenas fitas negras
de veludo, o cabelo procurava
escapar-se como podia para longe
da cabeça; caía, já sem força,
esgotado por aquele grande
combate, em madeixas desiguais,
espalhando-se sobre a falta de
pescoço e o triplo queixo - e ia
intrometer-se, maroteco, no colarinho
da blusa de seda cor de mostarda.
Ele, na primeira hora, perante o
silêncio dela, começou por identificar
os sintomas que o atenazavam:
irritação permanente, insónia,
contrariedade, frustração, refeições
de despejar frigoríficos a meio da
noite, vontade de atirar a mulher pela
janela fora, vontade que se estendia
a todas as suas anteriores mulheres,
todas as mulheres, sem excluir a
psicóloga que quando cruzava os
pezinhos papudos em sapatos de
salto confortáveis fazia ouvir o
roçagar das meias que
espartilhavam a perna curta.
Passada esta fase introdutória e
perante o silêncio impávido da
doutora Anália, Alberto falou das
suas fantasias sexuais (capítulo
violação colectiva). Estava
convencido de que era o que ela
queria ouvir.
- Não - disse ela, por fim - você fala
daquilo que quiser. Daquilo que o
preocupa.
Ficaram calados a olhar um para o
outro - ele ainda não tinha passado à
fase do decúbito dorsal - e Alberto
procurava uma coisa para dizer, mas
a psicóloga advertiu que tinham
esgotado o tempo e perguntou-lhe se
queria voltar noutro dia.
- Porquê? - perguntou ele - Acha que
estou maluco?
- Acha que eu acho que está maluco?
- perguntou ela.
Assim calou-o.
Alberto tivera as suas razões para
sentir relutância pela psicoterapia.
De facto, o que poderiam alguma vez
dizer-lhe de sofá para sofá que ele
não soubesse desde sempre sobre si
próprio? Nesses dois meses em que
resistiu, a mulher e os colegas
tinham tentado primeiro animá-lo,
depois persuadi-lo de que devia
procurar alguém com quem falar, e
finalmente, quiseram dissuadi-lo de
tomar, de motu proprio, umas
pastilhas que, dizia a literatura e
quem já experimentara, eram pouco
menos que o paraíso na terra.
Alberto acedera, então, a procurar
esta doutora Anália, querendo e
temendo ao mesmo tempo que ela
lhe desse a tal receita das pastilhas.
Anália Pinto fora, no entanto, muito
clara: não dava pílulas. Dava
conversa.
Na segunda sessão, Alberto falou da
sua infância (feliz, embora o pai
fosse severo e o irmão mais velho
um perfeito delinquente que o
atormentava e lhe roubava tudo). Na
terceira sessão foi sexo na infância,
primeiras experiências. Na quarta,
sem saber porquê, pôs-se a falar da
mãe. Era boa senhora, apagadota,
dedicada à família. Uma mulher
normal, como tantas outras donas-
de-casa, que guardava
distraidamente os ovos no bolso e
depois se esquecia de os misturar na
massa dos pastéis. E se maldizia por
isso, com um porco ovo em cada
mão, mostrados como chagas
mentais à mesa do almoço, perante o
embaraço da família .
Alberto e a psicóloga tinham chegado
a um protocolo apropriado a ambos.
Ela ouvia e ele falava. Não do que lhe
apetecia, embora ela insistisse para
que ele estivesse à-vontade, deitado
no divã de pele negra a olhar para
uma racha no tecto que não lhe
sugeria nada de especial, porque
justamente não tinha a menor ideia
do que lhe apetecia, mas falando do
que ele pensava que era adequado
àquele tipo de situações.
Cedo Alberto Inácio se habituou às
suas terças-feiras com Anália. Era
uma obrigação como outra qualquer.
Esgotada a riqueza das experiências
infantis (primeira cabeça partida,
primeira injecção, primeiro sonho
com abelhas assassinas, primeira
separação da mãe, primeiras
apalpadelas com o irmão e colegas
da escola, primeira vez que viu o pai
todo nu), entrou a falar da sua
concepção do mundo já em
velocidade de cruzeiro. A psicóloga
não queria saber de resultados.
Semicerrava os olhos, deixava correr
o marfim e muitas vezes Alberto
suspeitou que ela tivesse
adormecido, pela respiração pausada
e profunda que ouvia atrás de si.
- Toda esta conversa fiada sobre a
defesa do ambiente - dizia ele - está-
se mesmo a ver que não vai dar em
nada. As grandes empresas
americanas só querem é sacar o
delas, estão agora preocupadas com
os tigres da Malásia ou a protecção
das tartarugas gigantes. Dentro de
vinte anos não vai haver água para
todos. Só para os que puderem
pagar. Sabe quanto é que vai custar
uma garrafa de litro e meio segundo
os últimos cálculos que li num sítio
da Internet? Vai custar vinte e tal
contos, é conforme o câmbio do
dólar estiver na altura. O dólar reina
em todo o lado. Nós aqui não somos
nada. Os tipos é que mandam na
gente, tudo o que eles querem, faz-
se. Nem perguntam. Também, iam
perguntar a quem? Aos badamecos
dos governos que só lá estão a
encher-se ? Eles querem cá saber se
a qualidade de vida vai piorar, se as
pessoas ficam cada vez mais
endividadas? Os Bancos é que
mandam e funcionam com lavagem
de dinheiro da droga.
A droga era um problema. E, mais
adiante, sobre "as pessoas":
- As pessoas são estúpidas e
mesquinhas. Nunca vi país em que
as pessoas fossem mais estúpidas e
mesquinhas. Um dia destes fiz uma
ultrapassagem perfeitamente dentro
das regras, veio o tipo atrás de mim
a buzinar o tempo todo. Seguiu-me
até casa, não devia ter mesmo mais
nada que fazer. E depois quando
devem lutar pelos seus direitos, por
aquilo que é realmente importante,
encolhem-se, são uns vermes,
sempre com medo de perder o
emprego ou de apanhar na cabeça da
mulher.
Sobre "as mulheres":
- Eu não compreendo as mulheres.
Quanto mais as conheço, menos as
compreendo. Falam muito, com
muitos pormenores, não se calam,
são umas perfeitas gralhas. É muito
cansativo. A Lena, a minha segunda
mulher, era ao contrário. Deprimia,
estava sempre de trombas. Primeiro
era da gravidez, depois era dos
gémeos que não a deixavam dormir,
se dormia demais era porque ficava
com dores de cabeça, se dormia de
menos andava aos berros pela casa,
e nunca sabia nada, eu perguntava-
lhe o que é que ela achava disto ou
daquilo e ela respondia "não sei".
Sempre. Respondia a tudo "não sei".
Esta agora, que se chama Érnia, a
minha actual mulher, então sabe
tudo, tem opiniões sobre tudo, anda
sempre toda contente, é
insuportável.
Sobre "os amigos":
- Os meus amigos são todos gajos
muito porreiros. Não tenho muitos,
mas são todos bons. O Paiva é que
é um bocado mais chato, é um tipo
neurótico que pensa sempre o pior,
daquelas pessoas que está sempre a
imaginar o que é que pode correr
mal e quase nem sai de casa, é um
castigo para a gente se encontrar.
Mas é o meu amigo mais antigo,
conhecemo-nos no Secundário e
agora às vezes vamos comer umas
tapas e beber umas bejecas, mas eu
não tenho muita paciência para o
aturar.
Sobre "o amor" :
- O amor é complicado. É
complicado. Primeiro ligamo-nos às
pessoas, depois desiludem-nos... É
difícil. Tive sempre desilusões. O
amor é muito... fugidio. Não dura
sempre, acho eu. Dura o que dura,
temos de nos defender o tempo todo,
se não comem-nos as papas na
cabeça. Isto é uma selva, ou se
come, ou se é comido.
Sobre "o amor e o sexo":
- Não são bem a mesma coisa.
Sobre "a Primavera":
- Não gosto, a minha estação favorita
é o Verão. A Primavera dá-me uma
certa angústia, não sei se isto será
normal.
A estas íntimas confidências
seguiam-se períodos de silêncio em
que Alberto Inácio olhava a racha no
tecto que já o começava a irritar e
se perguntava se a psicóloga estaria
a dormir ou acordada.
- Uma vez conheci numa festa de
anos uma psicóloga... - disse ele, por
fim.
- Acho que laboramos aqui num
malentendido, senhor Duarte, eu não
sou psicóloga, sou psiquiatra e
psicanalista.
Foi a única vez que Alberto Inácio a
viu zangada. Deu-lhe um certo mal-
estar aquele engano, não estava a
ver a diferença entre uma coisa e
outras, mas fez-se penalizado de a
ter ofendido, mesmo sem querer. Na
empresa perguntou aos colegas se
sabiam qual era a diferença entre um
psicólogo, um psicoterapeuta, um
psicanalista e um psiquiatra, e gerou-
se alguma confusão, a que o Manuel
António Pinto pôs termo sem demora,
porque além de ser grande e gordo,
tinha uma voz grossa e dissesse o
que dissesse, fazia-o com
autoridade.
-Hoje vou comer um bife! - dizia ele
à uma da tarde. E ninguém se atrevia
a responder-lhe.
Houve uma altura da terapia em que
falaram de impostos e da forma mais
eficaz de se safarem deles.
Seguiram-se informações sobre o
sistema caduco da segurança social,
os investimentos na Bolsa, pc versus
mackintosh, o monopólio da
Microsoft, a carestia de vida, o preço
dos terrenos, o crédito à habitação e
tudo isto porque Alberto desdenhava
discutir a programação televisiva,
embora não se envergonhasse de
admitir que tinha o vício das notícias
das oito.
- Gosto de me manter informado.
Com isto Alberto Inácio estava a ficar
falho de temas e de opiniões sobre
os grandes debates universais. Lá
veio o dia em que não lhe ocorreu
uma única frase e se deixou ficar um
grande bocado, tenso e cheio de
sentimentos de culpa, a olhar o
tecto.
- Não quereria falar-me um pouco de
si? - perguntou a psicóloga.
- Eu? - perguntou o doente.
Estava-se num ponto de viragem.
Que diria ainda Alberto Inácio de si
próprio? Não tinha ele confidenciado
que gostava de ver o noticiário das
oito? Que trazia debaixo de olho um
terreno muito em conta para os
lados da Malveira da Serra? Que não
tinha medo da morte? Que o que
mais o atraía nas mulheres (seria
isto normal?) eram as clavículas?
Que não tinha sonhos ou não se
lembrava deles, qual era a
diferença?
- Mas agora estou melhor- disse ele -
acho que me fez bem vir cá falar
consigo.
A doutora Anália esperou
pacientemente mais cinco minutos e
declarou a sessão encerrada.
Alberto sentiu-se curado. Já dormia
as suas sete horas seguidas, o
padrão normal de um adulto normal,
uma vez por semana mergulhava
higienicamente na mulher, cada
manhã bebia o café, fazia o nó da
gravata e tomava o seu lugar na fila
de trânsito a ouvir um grupo de
comediantes no rádio do carro. Uma
vez chegou a telefonar para o
programa e participou num
passatempo. Tinha dias melhores,
outros piores. Como toda a gente.
Quando chegava ao emprego trocava
umas frases com os colegas que
discutiam as perguntas exóticas de
um programa de televisão em que se
ganhava muito dinheiro. Manuel
António Pinto entrava, ficava um
bocado à escuta e dizia:
- Não era fácil. As pessoas normais
não sabem o que quer dizer
"aboletamento".
Os outros baixavam a cabeça e, no
íntimo, sabiam que deviam
imediatamente sentar-se diante dos
computadores e começar a
trabalhar, enviando facturas,
convocando clientes, copiando
programas, inserindo ficheiros,
enviando e recebendo mensagens,
dilitando material comprometedor ou
fora de prazo.
Quando havia um silêncio, todos
levantavam em uníssono a cabeça,
estranhando. Logo tocava um
telemóvel, alguém espirrava, ou
passava um vauxhall cor-de-laranja,
em primeira, subindo a custo a rua
íngreme, e lá dentro um senhor de
idade perdido nuns óculos imensos,
todo composto de chapéu mole e
sobretudo, guiando muito chegado ao
volante, como que empurrando o
velho chasso com a mera força da
mente e o medo de ficar a meio-
caminho.
Todas as terças-feiras Alberto Inácio
sentia, à hora que fora a da consulta,
uma certa melancolia. Mas, que
fazer? O pânico passara, já dormia
bem, cumpria os deveres, até os
conjugais, dava rendimento no
trabalho. Não havia razão para
voltar. Uma vez atreveu-se pelos
corredores que iam dar ao gabinete
da psicóloga, passou à porta,
atardou-se a escutar... De dentro
vinha um murmúrio, como uma longa
queixa, uma voz de homem à beira
do choro... Não resistiu, correu à
casa-de-banho a buscar um banco,
nervoso, aos tropeções, alinhou-o,
trepou e pôs-se à espreita pela
bandeira da porta.
A doutora Anália dormia de boca
aberta, com uma perna para cada
banda, os sapatos de salto
confortável bambos nos pezinhos
papudos e a paleta dos
apontamentos abandonada no
regaço, para onde também pendia,
em pregas sucessivas, uma barriga
que, agora liberta das constrições a
que sempre obriga a vida em
sociedade, se revelava
verdadeiramente monumental.
Deitado no sofá de pele negra, Álvaro
Almeida choramingava. Tinha
demasiadas razões para isso e elas
eram todas do conhecimento geral.
Alberto, esquecido da periclitante
situação, e comprometedora, em que
se encontrava, olhava ora um ora
outro personagem do quadro e sentia
nada senão ciúme. Um ciúme bruto,
fino como um punhal. Aquele sofá
era seu, a puta da psicóloga era sua.
Tinha Álvaro Almeida razões para
chorar? Chorava agora Alberto Inácio
por maioria de razão. Ninguém o viu.
Ele pôde tranquilamente descer do
banco e arrastar-se para a casa-de-
banho, onde cortou dois
quadradinhos de papel higiénico para
se assoar.
Érnia mostrou pela primeira vez
impaciência quando ele se esqueceu
totalmente de se levantar. De facto,
Alberto acordava cada dia mais
tarde, até chegar a não se levantar
da cama senão pelas oito da noite.
Primeiro deu razões:
- Hoje chove.
No dia seguinte:
- Com este calor?
Depois:
- Não me sinto bem.
Encolhia os ombros se Érnia lhe
chamava a atenção. Ela fez o que lhe
recomendou a Maria de S. Tomé, sua
guru e companheira de alegrias.
Comprou lingerie vermelha indecente
e apresentou-se naqueles preparos
diante de um Alberto Inácio
macilento, barbudo e mal-cheiroso,
que lhe deitou um olhar de enfado e
disse:
- Não me faças rir, que me dói o
peito.
Ela encaixou bem, tomou aquilo como
um dito de espírito e foi-se
desfardar. Não tinha qualquer
experiência em depressões, a Érnia,
era uma constituição nervosa à
prova de bala, não se lhe podia levar
a mal.
- Vai achar isto estranho - começou
ele, de regresso à terapia - mas um
dia destes passei aqui à porta, fui
buscar um banco e pus-me a
espreitar pela bandeira da porta.
Estava aqui o Álvaro, aquele que tem
a mulher muito doente e que é mais
baixo do que eu e a doutora estava a
dormir.
Caíu o silêncio.
- E você sentiu-se traído?- perguntou
ela, ao cabo de uns minutos.
- Sim - disse ele.
Foi o primeiro de muitos "sins" que
Alberto havia de dizer à sua médica.
Já não insistia tanto nos impostos,
nas catástrofes naturais, mas
continuava a querer falar, embora
não soubesse bem de quê. Anália
propôs-lhe de novo que falasse do
que lhe apetecia, livremente, sem
restrições, e Alberto resolveu
começar pelos colegas do emprego,
porque era o que estava mais à mão.
E foi por ali adiante, com boa-
vontade, até a psicóloga lhe
perguntar num intervalo:
- Porque é que diz sempre isso?
- Isso o quê?
- De todas as pessoas que
mencionou até agora, diz que é mais
alto do que elas.
- E sou.
Silêncio, de novo. Por fim, Alberto
disse:
- Acho que estou convencido de que
sou anão. Sei, racionalmente sei, que
tenho um metro e setenta e dois,
mas cá dentro estou convencido de
que sou anão. Nos primeiros cinco
anos de vida praticamente não
cresci. A minha mãe preocupava-se,
dizia sempre, "olha o João, cresceu
tanto!", "olha o António, como está
crescido!", havia uma censura no
que dizia. Toda a gente crescia à
minha volta, menos eu. Ela não dizia
nada directamente, mas eu sabia que
ela tinha medo de que eu ficasse
anão. Andava-me sempre a medir
com os olhos. De cada vez que
olhava para mim, eu sentia que era
para me medir, para perceber se eu
já crescera. Aos cinco anos, eu tinha
o tamanho de dois ou três. Depois fui
para a escola e cresci de repente, da
noite para o dia, uns vinte
centímetros. Bem via que a minha
mãe pensava que aquilo era uma
ilusão, que eu ou nunca mais ia
crescer, ou ia encolher durante a
noite. Mas não, fui crescendo
normalmente, sempre a sentir-me
um bocado mal por estar a crescer.
Mas não podia fazer nada contra
isso.
- Ora vê? - disse a psicóloga -
Estamos a fazer imensos
progressos.
Alberto sentiu um nó na garganta e
um calorzinho na boca do estômago.
Há muito tempo que ninguém cuja
opinião prezasse lhe dizia: "muito
bem, Alberto! ". Contente, repetiu a
sua história do anão umas três ou
quatro vezes, até Anália lhe propor
que passassem à frente. Mas ele,
que nunca na vida pensara no que
lhe tinha acabado de contar, não
podia senão sentir-se maravilhado,
olhando o imenso abismo de terra
incógnita que se lhe apresentava
pela frente.
- Nunca tinha pensado nisto- disse
ele.
- É perfeitamente normal - respondeu
a psicóloga.
Alberto Inácio cedo lhe apanhou o
jeito e começava assim grande parte
das frases:
- Será com certeza perfeitamente
normal...
Compreende-se, deste modo, a
indescritível alegria dele ao conseguir
pela primeira vez lembrar-se de um
sonho. Trouxe-o no regaço psíquico,
com mil cuidados, antecipando o
apetite de Anália e a gulosa
degustação a dois de um conteúdo
parco: Alberto, nesse sonho,
chamuscava as pontas dos dedos.
Era isto. Tudo o resto soçobrara de
novo no inconsciente e deixara uma
memória fugidia, um cheiro, uma
tonalidade, sombras. Mas, como
tudo, lembrar-se de um sonho era
uma questão de treino e na semana
seguinte a história que Alberto trazia
para contar já botara corpo e
consistência. Mas havia ainda partes
moles, outras tantas dúvidas:
- Eu ia pela beira de um rio, não sei
com quem... E não era bem um rio.
Não sei explicar.
A terapeuta acabou por dizer:
- Porque não tenta desenhar o que
não consegue dizer?
E Alberto Inácio começou a pintar. O
difícil é compreender porque terá
escolhido o formato minúsculo, o
pincel número dois e cores puras
tiradas a direito do tubo, se
tomarmos como premissa o facto de
ele já ter tomado consciência da
história do anão. Eram guaches em
papelitos de nove por doze, toscos e
desinteressantes. Mas, tomando a
peito a missão, Alberto foi-se
esforçando por aprender as leis da
perspectiva e as regras da
combinação das cores, assimilando
preceitos atrás de preceitos dos
livros populares, imitando os
mestres, grandes e pequenos,
conforme a necessidade e o
trabalho.
Érnia sossegou. Via Alberto Inácio
enterrado no sofá, com a prancheta
nos joelhos, diante de um boião de
iogurte cheio de água, curvado sobre
o desenho. Desistira de o interessar
nas coisas exteriores, sabia que
estar sentado era um grau acima de
estar deitado. E começou a viver
sobretudo fora de casa.
Com Anália, Alberto discutia a
mistura das cores e a melhor
maneira de se obter um ocre
luminoso que não lembrasse - e aqui
ele hesitava na expressão, para não
ofender a sensibilidade da psicóloga -
enfim, que não se parecesse com
cocó de cavalo. Ela procurou
explorar aquela associação mais ou
menos directa que ele fazia sem dar
por isso entre todas as tonalidades
do castanho e as fezes do cavalo, e
daí a um nada, já estavam a falar do
pai de Alberto, que agora aparecia a
seu filho de forma muito diversa
daquela com que o despachara numa
das primeiras sessões de terapia.
Onde estivera um patriarca austero e
firme,isolado e indiferente aos
afectos, surgia agora um homem
tímido e tíbio, preocupado com a
sobrevivência da família e submetido
ao terror dos ataques de fúria do seu
chefe, um homem terrível, a rondar o
criminoso, que seria internado no
final da vida. Até fisicamente o pai de
Alberto se alterara: o peito de ferro e
as costas direitas deram lugar a um
personagem quase chaplinesco, de
longos pés e engraçada maneira de
andar.
Numa tarde de sábado, em que
Alberto já organizara e arquivara os
desenhos que os pequenos gémeos
tinham produzido na semana anterior
e se preparava para começar a
pintar, Érnia entrou no escritório
trazendo pela mão Manuel António
Pinto.
- Quero que conheças uma pessoa...
É o Manel ... - disse ela, e foi a
primeira vez que Alberto a viu pouco
à-vontade.
- Olá, Manel - disse Alberto, com um
tal sentimento de irrrealidade, que se
esqueceu da mão com o pincel,
suspensa a caminho da água.
- Já nos conhecemos - disse o
colega.
A enorme altura e o volume
considerável de Manuel António Pinto
atravessaram o escritório de Alberto
para se postarem diante do quadro
abstracto. Érnia e o marido ficaram a
aguardar a consequência.
- Foste tu que fizeste? - perguntou o
colosso. E, sem precisar de resposta
- Gosto. Gosto mesmo muito.
sábado, 2 de maio de 2015
QUADRO ABSTRACTO
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