quarta-feira, 13 de maio de 2015
terça-feira, 12 de maio de 2015
segunda-feira, 11 de maio de 2015
domingo, 10 de maio de 2015
sábado, 9 de maio de 2015
sexta-feira, 8 de maio de 2015
Em declarações ao SAPO, Bilimbao revelou que a cantora Bling possui uma voz e talento perfeito para dar ainda mais qualidade às suas novas músicas: “seria um grande desafio fazer uma parceria com Dama do Bling em algumas faixas do meu álbum. Nunca é demais, acredito que o meu desejo vai se concretizar” confessou.
Enquanto o sonho de trabalhar com a rainha do hip-hop não se concretiza, Bilimbao está a caprichar na sua colectânea de 12 faixas que pretende divulgar: “como forma de maximizar atenções dos fãs para o meu álbum, o mixtape estará disponível na internet, no próximo dia 1 de Abril,” revelou.
O músico garante ainda que seu primeiro álbum discográfico sai este ano, apesar das dificuldades financeiras que está a enfrentar.
sábado, 2 de maio de 2015
QUADRO ABSTRACTO
Em certo dia de Janeiro dos seus
quarenta e cinco anos, a um sábado
à tarde, sentado de perna traçada no
escritório, Alberto Inácio reparou pela
primeira vez no quadro que tinha
diante de si. Chamava-se "Cão que
Não Ladra" e declarava influências de
grande parte dos pintores e
correntes do último século e meio.
Este quadro estava com Alberto
desde o primeiro casamento,
seguindo-o pelas paredes das várias
casas em que vivera. Era
"abstracto".
O primeiro casamento passara-se
todo em três assoalhadas. O quadro
estava na parede da sala, prenda dos
amigos, e presenciara muito jantar
silencioso entre cônjuges; escapara
à jarra toda cinematograficamente
atirada pela esposa ao saber que
Alberto iniciara já uma segunda
ligação, num outro apartamento, um
pouco mais a Oeste, na mesma
cidade. Aí, "Cão que Não Ladra", por
falta de espaço e distracção do
proprietário, pendurou-se na húmida
marquise fechada a alumínio, a olhar
para as traseiras de outros prédios.
Mais tarde, no segundo casamento,
com uma recém-licenciada em
Biologia que abandonou tudo para se
dedicar a um par de gémeos que lhe
nascera por acaso, o quadro fora
muito visto, mas pouco comentado,
no patamar da entrada, encimando
um liminar arranjo de telefone-de-
teclas/jarra com túlipas de pano/
fotografia dos noivos no dia do
casamento, sobre uma mesinha
envernizada de pernas arqueadas
tais as do vaqueiro que se visse
obrigado, de chapéu de abas e
chicote em punho, a palmilhar os
campos em busca da montada. Aqui
se deixavam também, pelas sete da
tarde de todos os dias, as chaves de
Alberto Inácio, do carro, do alarme do
carro ,da casa e da casa-de-campo
que fora herança desleixada da
mulher, tudo preso num anel de aço
inoxidável, e culminando numa bola
de borracha vermelha eriçada de
múltiplos tentáculos muito finos. Esta
era uma bola em que a mulher de
Alberto não conseguia tocar,
pegando nas chaves com todo o
cuidado de dois dedos.
Terminando este casamento por
razões que nunca se chegaram a
esclarecer, de todas as discussões
que se geraram entre ambos, o
debate sobre o destino do quadro foi,
sem dúvida, o mais pacífico. Alberto
levou-o consigo para um outro andar,
em alguns aspectos bastante melhor
do que o anterior, pois tinha muito sol
e um quarto suplementar, onde
ficavam os gémeos de quinze em
quinze dias fazendo de escritório no
resto do tempo.
A terceira mulher de Alberto Inácio
era, até à data, a de mais fácil
convívio. Érnia tinha uma disposição
risonha e extrovertida, falava alto,
acordava a cantar, achava graça a
tudo o que ele dizia. Gostava de
sexo, estava sempre pronta para as
novidades, bebia com moderação,
fumava, viajava. Para cúmulo, tinha
fortuna própria, gastava o tempo em
horário flexível numa loja de sofás
que pertencia à família e não
precisava de crianças. Quando os
gémeos iam passar o fim-de-
semana, ela observava-os de uma
distância segura, fixa num grande
sorriso mudo.
A felicidade desta mulher cedo
começou a agastar o Alberto. Érnia
não sabia distinguir o fim-de-semana
dos outros dias. Era sempre festa,
uma cara de riso. Ele usou todos os
pretextos para a rebaixar, muitas
vezes em público, aludindo a uma
sua suposta costela brasileira e a
tudo ela respondia simpática e
compreensiva, dando ao marido a
noção cada vez mais absoluta de
que lhe era indiferente tudo o que ele
dissesse. Alberto passou a fechar-se
no escritório nos sábados em que os
gémeos não vinham e a precipitar-se
para o computador, fingindo-se
ocupado, de cada vez que ouvia os
passos dela no corredor. Mas Érnia
entrava, abria os cortinados e a
janela para deixar sair o fumo,
mostrava compaixão pelo excesso
de trabalho que a empresa exigia,
fazia-lhe uma festa no cabelo e ele
tinha de reprimir um movimento de
repulsa. Pouco depois Érnia saía
porta fora para se encontrar com os
amigos e, como um miúdo, Alberto
corria para a sala a ver na televisão
o basquete da NBA.
Nos últimos meses procurara, de
todas as formas, destruir a felicidade
inexpugnável desta mulher.
Irritavam-no a forma como
pronunciava os erres, que vinha do
facto de ser ainda um bocado alemã,
os sapatos rasos de tamanho
generoso, que facilmente
descambavam e o modo como
levava a mão à gola do casaco,
fazendo-lhe festas. Havia ali
comparações muito desmerecedoras
para a Érnia. Mas nada parecia tocá-
la.
Nesta tarde, fechado no escritório a
olhar para a parede, Alberto reparara
pela primeira vez no quadro. Tivera
um choque de reconhecimento e
depois um pânico que parecera
deslocar todos os objectos. Deu-se
uma torção do espaço, como um
tremor de terra instantâneo, e depois
um rasgão, um raio invisível - e o
computador, o candeeiro de pé, o
cinzeiro, o relógio de prata pousado
no tampo da secretária, o maço de
folhas eternamente em branco, todos
eles se transmutaram: eram as suas
próprias coisas, mas inteiramente
alheias.
A psicóloga da empresa, anafada,
cinquentona, olhava-o por cima das
meias-lentes, com a placidez dos
psicólogos, enquanto Alberto Inácio
descrevia essa e outras
experiências. Na cabeleira dela,
volumosa e grisalha, presa numa
grande variedade de ganchos, de
travessas e de pequenas fitas negras
de veludo, o cabelo procurava
escapar-se como podia para longe
da cabeça; caía, já sem força,
esgotado por aquele grande
combate, em madeixas desiguais,
espalhando-se sobre a falta de
pescoço e o triplo queixo - e ia
intrometer-se, maroteco, no colarinho
da blusa de seda cor de mostarda.
Ele, na primeira hora, perante o
silêncio dela, começou por identificar
os sintomas que o atenazavam:
irritação permanente, insónia,
contrariedade, frustração, refeições
de despejar frigoríficos a meio da
noite, vontade de atirar a mulher pela
janela fora, vontade que se estendia
a todas as suas anteriores mulheres,
todas as mulheres, sem excluir a
psicóloga que quando cruzava os
pezinhos papudos em sapatos de
salto confortáveis fazia ouvir o
roçagar das meias que
espartilhavam a perna curta.
Passada esta fase introdutória e
perante o silêncio impávido da
doutora Anália, Alberto falou das
suas fantasias sexuais (capítulo
violação colectiva). Estava
convencido de que era o que ela
queria ouvir.
- Não - disse ela, por fim - você fala
daquilo que quiser. Daquilo que o
preocupa.
Ficaram calados a olhar um para o
outro - ele ainda não tinha passado à
fase do decúbito dorsal - e Alberto
procurava uma coisa para dizer, mas
a psicóloga advertiu que tinham
esgotado o tempo e perguntou-lhe se
queria voltar noutro dia.
- Porquê? - perguntou ele - Acha que
estou maluco?
- Acha que eu acho que está maluco?
- perguntou ela.
Assim calou-o.
Alberto tivera as suas razões para
sentir relutância pela psicoterapia.
De facto, o que poderiam alguma vez
dizer-lhe de sofá para sofá que ele
não soubesse desde sempre sobre si
próprio? Nesses dois meses em que
resistiu, a mulher e os colegas
tinham tentado primeiro animá-lo,
depois persuadi-lo de que devia
procurar alguém com quem falar, e
finalmente, quiseram dissuadi-lo de
tomar, de motu proprio, umas
pastilhas que, dizia a literatura e
quem já experimentara, eram pouco
menos que o paraíso na terra.
Alberto acedera, então, a procurar
esta doutora Anália, querendo e
temendo ao mesmo tempo que ela
lhe desse a tal receita das pastilhas.
Anália Pinto fora, no entanto, muito
clara: não dava pílulas. Dava
conversa.
Na segunda sessão, Alberto falou da
sua infância (feliz, embora o pai
fosse severo e o irmão mais velho
um perfeito delinquente que o
atormentava e lhe roubava tudo). Na
terceira sessão foi sexo na infância,
primeiras experiências. Na quarta,
sem saber porquê, pôs-se a falar da
mãe. Era boa senhora, apagadota,
dedicada à família. Uma mulher
normal, como tantas outras donas-
de-casa, que guardava
distraidamente os ovos no bolso e
depois se esquecia de os misturar na
massa dos pastéis. E se maldizia por
isso, com um porco ovo em cada
mão, mostrados como chagas
mentais à mesa do almoço, perante o
embaraço da família .
Alberto e a psicóloga tinham chegado
a um protocolo apropriado a ambos.
Ela ouvia e ele falava. Não do que lhe
apetecia, embora ela insistisse para
que ele estivesse à-vontade, deitado
no divã de pele negra a olhar para
uma racha no tecto que não lhe
sugeria nada de especial, porque
justamente não tinha a menor ideia
do que lhe apetecia, mas falando do
que ele pensava que era adequado
àquele tipo de situações.
Cedo Alberto Inácio se habituou às
suas terças-feiras com Anália. Era
uma obrigação como outra qualquer.
Esgotada a riqueza das experiências
infantis (primeira cabeça partida,
primeira injecção, primeiro sonho
com abelhas assassinas, primeira
separação da mãe, primeiras
apalpadelas com o irmão e colegas
da escola, primeira vez que viu o pai
todo nu), entrou a falar da sua
concepção do mundo já em
velocidade de cruzeiro. A psicóloga
não queria saber de resultados.
Semicerrava os olhos, deixava correr
o marfim e muitas vezes Alberto
suspeitou que ela tivesse
adormecido, pela respiração pausada
e profunda que ouvia atrás de si.
- Toda esta conversa fiada sobre a
defesa do ambiente - dizia ele - está-
se mesmo a ver que não vai dar em
nada. As grandes empresas
americanas só querem é sacar o
delas, estão agora preocupadas com
os tigres da Malásia ou a protecção
das tartarugas gigantes. Dentro de
vinte anos não vai haver água para
todos. Só para os que puderem
pagar. Sabe quanto é que vai custar
uma garrafa de litro e meio segundo
os últimos cálculos que li num sítio
da Internet? Vai custar vinte e tal
contos, é conforme o câmbio do
dólar estiver na altura. O dólar reina
em todo o lado. Nós aqui não somos
nada. Os tipos é que mandam na
gente, tudo o que eles querem, faz-
se. Nem perguntam. Também, iam
perguntar a quem? Aos badamecos
dos governos que só lá estão a
encher-se ? Eles querem cá saber se
a qualidade de vida vai piorar, se as
pessoas ficam cada vez mais
endividadas? Os Bancos é que
mandam e funcionam com lavagem
de dinheiro da droga.
A droga era um problema. E, mais
adiante, sobre "as pessoas":
- As pessoas são estúpidas e
mesquinhas. Nunca vi país em que
as pessoas fossem mais estúpidas e
mesquinhas. Um dia destes fiz uma
ultrapassagem perfeitamente dentro
das regras, veio o tipo atrás de mim
a buzinar o tempo todo. Seguiu-me
até casa, não devia ter mesmo mais
nada que fazer. E depois quando
devem lutar pelos seus direitos, por
aquilo que é realmente importante,
encolhem-se, são uns vermes,
sempre com medo de perder o
emprego ou de apanhar na cabeça da
mulher.
Sobre "as mulheres":
- Eu não compreendo as mulheres.
Quanto mais as conheço, menos as
compreendo. Falam muito, com
muitos pormenores, não se calam,
são umas perfeitas gralhas. É muito
cansativo. A Lena, a minha segunda
mulher, era ao contrário. Deprimia,
estava sempre de trombas. Primeiro
era da gravidez, depois era dos
gémeos que não a deixavam dormir,
se dormia demais era porque ficava
com dores de cabeça, se dormia de
menos andava aos berros pela casa,
e nunca sabia nada, eu perguntava-
lhe o que é que ela achava disto ou
daquilo e ela respondia "não sei".
Sempre. Respondia a tudo "não sei".
Esta agora, que se chama Érnia, a
minha actual mulher, então sabe
tudo, tem opiniões sobre tudo, anda
sempre toda contente, é
insuportável.
Sobre "os amigos":
- Os meus amigos são todos gajos
muito porreiros. Não tenho muitos,
mas são todos bons. O Paiva é que
é um bocado mais chato, é um tipo
neurótico que pensa sempre o pior,
daquelas pessoas que está sempre a
imaginar o que é que pode correr
mal e quase nem sai de casa, é um
castigo para a gente se encontrar.
Mas é o meu amigo mais antigo,
conhecemo-nos no Secundário e
agora às vezes vamos comer umas
tapas e beber umas bejecas, mas eu
não tenho muita paciência para o
aturar.
Sobre "o amor" :
- O amor é complicado. É
complicado. Primeiro ligamo-nos às
pessoas, depois desiludem-nos... É
difícil. Tive sempre desilusões. O
amor é muito... fugidio. Não dura
sempre, acho eu. Dura o que dura,
temos de nos defender o tempo todo,
se não comem-nos as papas na
cabeça. Isto é uma selva, ou se
come, ou se é comido.
Sobre "o amor e o sexo":
- Não são bem a mesma coisa.
Sobre "a Primavera":
- Não gosto, a minha estação favorita
é o Verão. A Primavera dá-me uma
certa angústia, não sei se isto será
normal.
A estas íntimas confidências
seguiam-se períodos de silêncio em
que Alberto Inácio olhava a racha no
tecto que já o começava a irritar e
se perguntava se a psicóloga estaria
a dormir ou acordada.
- Uma vez conheci numa festa de
anos uma psicóloga... - disse ele, por
fim.
- Acho que laboramos aqui num
malentendido, senhor Duarte, eu não
sou psicóloga, sou psiquiatra e
psicanalista.
Foi a única vez que Alberto Inácio a
viu zangada. Deu-lhe um certo mal-
estar aquele engano, não estava a
ver a diferença entre uma coisa e
outras, mas fez-se penalizado de a
ter ofendido, mesmo sem querer. Na
empresa perguntou aos colegas se
sabiam qual era a diferença entre um
psicólogo, um psicoterapeuta, um
psicanalista e um psiquiatra, e gerou-
se alguma confusão, a que o Manuel
António Pinto pôs termo sem demora,
porque além de ser grande e gordo,
tinha uma voz grossa e dissesse o
que dissesse, fazia-o com
autoridade.
-Hoje vou comer um bife! - dizia ele
à uma da tarde. E ninguém se atrevia
a responder-lhe.
Houve uma altura da terapia em que
falaram de impostos e da forma mais
eficaz de se safarem deles.
Seguiram-se informações sobre o
sistema caduco da segurança social,
os investimentos na Bolsa, pc versus
mackintosh, o monopólio da
Microsoft, a carestia de vida, o preço
dos terrenos, o crédito à habitação e
tudo isto porque Alberto desdenhava
discutir a programação televisiva,
embora não se envergonhasse de
admitir que tinha o vício das notícias
das oito.
- Gosto de me manter informado.
Com isto Alberto Inácio estava a ficar
falho de temas e de opiniões sobre
os grandes debates universais. Lá
veio o dia em que não lhe ocorreu
uma única frase e se deixou ficar um
grande bocado, tenso e cheio de
sentimentos de culpa, a olhar o
tecto.
- Não quereria falar-me um pouco de
si? - perguntou a psicóloga.
- Eu? - perguntou o doente.
Estava-se num ponto de viragem.
Que diria ainda Alberto Inácio de si
próprio? Não tinha ele confidenciado
que gostava de ver o noticiário das
oito? Que trazia debaixo de olho um
terreno muito em conta para os
lados da Malveira da Serra? Que não
tinha medo da morte? Que o que
mais o atraía nas mulheres (seria
isto normal?) eram as clavículas?
Que não tinha sonhos ou não se
lembrava deles, qual era a
diferença?
- Mas agora estou melhor- disse ele -
acho que me fez bem vir cá falar
consigo.
A doutora Anália esperou
pacientemente mais cinco minutos e
declarou a sessão encerrada.
Alberto sentiu-se curado. Já dormia
as suas sete horas seguidas, o
padrão normal de um adulto normal,
uma vez por semana mergulhava
higienicamente na mulher, cada
manhã bebia o café, fazia o nó da
gravata e tomava o seu lugar na fila
de trânsito a ouvir um grupo de
comediantes no rádio do carro. Uma
vez chegou a telefonar para o
programa e participou num
passatempo. Tinha dias melhores,
outros piores. Como toda a gente.
Quando chegava ao emprego trocava
umas frases com os colegas que
discutiam as perguntas exóticas de
um programa de televisão em que se
ganhava muito dinheiro. Manuel
António Pinto entrava, ficava um
bocado à escuta e dizia:
- Não era fácil. As pessoas normais
não sabem o que quer dizer
"aboletamento".
Os outros baixavam a cabeça e, no
íntimo, sabiam que deviam
imediatamente sentar-se diante dos
computadores e começar a
trabalhar, enviando facturas,
convocando clientes, copiando
programas, inserindo ficheiros,
enviando e recebendo mensagens,
dilitando material comprometedor ou
fora de prazo.
Quando havia um silêncio, todos
levantavam em uníssono a cabeça,
estranhando. Logo tocava um
telemóvel, alguém espirrava, ou
passava um vauxhall cor-de-laranja,
em primeira, subindo a custo a rua
íngreme, e lá dentro um senhor de
idade perdido nuns óculos imensos,
todo composto de chapéu mole e
sobretudo, guiando muito chegado ao
volante, como que empurrando o
velho chasso com a mera força da
mente e o medo de ficar a meio-
caminho.
Todas as terças-feiras Alberto Inácio
sentia, à hora que fora a da consulta,
uma certa melancolia. Mas, que
fazer? O pânico passara, já dormia
bem, cumpria os deveres, até os
conjugais, dava rendimento no
trabalho. Não havia razão para
voltar. Uma vez atreveu-se pelos
corredores que iam dar ao gabinete
da psicóloga, passou à porta,
atardou-se a escutar... De dentro
vinha um murmúrio, como uma longa
queixa, uma voz de homem à beira
do choro... Não resistiu, correu à
casa-de-banho a buscar um banco,
nervoso, aos tropeções, alinhou-o,
trepou e pôs-se à espreita pela
bandeira da porta.
A doutora Anália dormia de boca
aberta, com uma perna para cada
banda, os sapatos de salto
confortável bambos nos pezinhos
papudos e a paleta dos
apontamentos abandonada no
regaço, para onde também pendia,
em pregas sucessivas, uma barriga
que, agora liberta das constrições a
que sempre obriga a vida em
sociedade, se revelava
verdadeiramente monumental.
Deitado no sofá de pele negra, Álvaro
Almeida choramingava. Tinha
demasiadas razões para isso e elas
eram todas do conhecimento geral.
Alberto, esquecido da periclitante
situação, e comprometedora, em que
se encontrava, olhava ora um ora
outro personagem do quadro e sentia
nada senão ciúme. Um ciúme bruto,
fino como um punhal. Aquele sofá
era seu, a puta da psicóloga era sua.
Tinha Álvaro Almeida razões para
chorar? Chorava agora Alberto Inácio
por maioria de razão. Ninguém o viu.
Ele pôde tranquilamente descer do
banco e arrastar-se para a casa-de-
banho, onde cortou dois
quadradinhos de papel higiénico para
se assoar.
Érnia mostrou pela primeira vez
impaciência quando ele se esqueceu
totalmente de se levantar. De facto,
Alberto acordava cada dia mais
tarde, até chegar a não se levantar
da cama senão pelas oito da noite.
Primeiro deu razões:
- Hoje chove.
No dia seguinte:
- Com este calor?
Depois:
- Não me sinto bem.
Encolhia os ombros se Érnia lhe
chamava a atenção. Ela fez o que lhe
recomendou a Maria de S. Tomé, sua
guru e companheira de alegrias.
Comprou lingerie vermelha indecente
e apresentou-se naqueles preparos
diante de um Alberto Inácio
macilento, barbudo e mal-cheiroso,
que lhe deitou um olhar de enfado e
disse:
- Não me faças rir, que me dói o
peito.
Ela encaixou bem, tomou aquilo como
um dito de espírito e foi-se
desfardar. Não tinha qualquer
experiência em depressões, a Érnia,
era uma constituição nervosa à
prova de bala, não se lhe podia levar
a mal.
- Vai achar isto estranho - começou
ele, de regresso à terapia - mas um
dia destes passei aqui à porta, fui
buscar um banco e pus-me a
espreitar pela bandeira da porta.
Estava aqui o Álvaro, aquele que tem
a mulher muito doente e que é mais
baixo do que eu e a doutora estava a
dormir.
Caíu o silêncio.
- E você sentiu-se traído?- perguntou
ela, ao cabo de uns minutos.
- Sim - disse ele.
Foi o primeiro de muitos "sins" que
Alberto havia de dizer à sua médica.
Já não insistia tanto nos impostos,
nas catástrofes naturais, mas
continuava a querer falar, embora
não soubesse bem de quê. Anália
propôs-lhe de novo que falasse do
que lhe apetecia, livremente, sem
restrições, e Alberto resolveu
começar pelos colegas do emprego,
porque era o que estava mais à mão.
E foi por ali adiante, com boa-
vontade, até a psicóloga lhe
perguntar num intervalo:
- Porque é que diz sempre isso?
- Isso o quê?
- De todas as pessoas que
mencionou até agora, diz que é mais
alto do que elas.
- E sou.
Silêncio, de novo. Por fim, Alberto
disse:
- Acho que estou convencido de que
sou anão. Sei, racionalmente sei, que
tenho um metro e setenta e dois,
mas cá dentro estou convencido de
que sou anão. Nos primeiros cinco
anos de vida praticamente não
cresci. A minha mãe preocupava-se,
dizia sempre, "olha o João, cresceu
tanto!", "olha o António, como está
crescido!", havia uma censura no
que dizia. Toda a gente crescia à
minha volta, menos eu. Ela não dizia
nada directamente, mas eu sabia que
ela tinha medo de que eu ficasse
anão. Andava-me sempre a medir
com os olhos. De cada vez que
olhava para mim, eu sentia que era
para me medir, para perceber se eu
já crescera. Aos cinco anos, eu tinha
o tamanho de dois ou três. Depois fui
para a escola e cresci de repente, da
noite para o dia, uns vinte
centímetros. Bem via que a minha
mãe pensava que aquilo era uma
ilusão, que eu ou nunca mais ia
crescer, ou ia encolher durante a
noite. Mas não, fui crescendo
normalmente, sempre a sentir-me
um bocado mal por estar a crescer.
Mas não podia fazer nada contra
isso.
- Ora vê? - disse a psicóloga -
Estamos a fazer imensos
progressos.
Alberto sentiu um nó na garganta e
um calorzinho na boca do estômago.
Há muito tempo que ninguém cuja
opinião prezasse lhe dizia: "muito
bem, Alberto! ". Contente, repetiu a
sua história do anão umas três ou
quatro vezes, até Anália lhe propor
que passassem à frente. Mas ele,
que nunca na vida pensara no que
lhe tinha acabado de contar, não
podia senão sentir-se maravilhado,
olhando o imenso abismo de terra
incógnita que se lhe apresentava
pela frente.
- Nunca tinha pensado nisto- disse
ele.
- É perfeitamente normal - respondeu
a psicóloga.
Alberto Inácio cedo lhe apanhou o
jeito e começava assim grande parte
das frases:
- Será com certeza perfeitamente
normal...
Compreende-se, deste modo, a
indescritível alegria dele ao conseguir
pela primeira vez lembrar-se de um
sonho. Trouxe-o no regaço psíquico,
com mil cuidados, antecipando o
apetite de Anália e a gulosa
degustação a dois de um conteúdo
parco: Alberto, nesse sonho,
chamuscava as pontas dos dedos.
Era isto. Tudo o resto soçobrara de
novo no inconsciente e deixara uma
memória fugidia, um cheiro, uma
tonalidade, sombras. Mas, como
tudo, lembrar-se de um sonho era
uma questão de treino e na semana
seguinte a história que Alberto trazia
para contar já botara corpo e
consistência. Mas havia ainda partes
moles, outras tantas dúvidas:
- Eu ia pela beira de um rio, não sei
com quem... E não era bem um rio.
Não sei explicar.
A terapeuta acabou por dizer:
- Porque não tenta desenhar o que
não consegue dizer?
E Alberto Inácio começou a pintar. O
difícil é compreender porque terá
escolhido o formato minúsculo, o
pincel número dois e cores puras
tiradas a direito do tubo, se
tomarmos como premissa o facto de
ele já ter tomado consciência da
história do anão. Eram guaches em
papelitos de nove por doze, toscos e
desinteressantes. Mas, tomando a
peito a missão, Alberto foi-se
esforçando por aprender as leis da
perspectiva e as regras da
combinação das cores, assimilando
preceitos atrás de preceitos dos
livros populares, imitando os
mestres, grandes e pequenos,
conforme a necessidade e o
trabalho.
Érnia sossegou. Via Alberto Inácio
enterrado no sofá, com a prancheta
nos joelhos, diante de um boião de
iogurte cheio de água, curvado sobre
o desenho. Desistira de o interessar
nas coisas exteriores, sabia que
estar sentado era um grau acima de
estar deitado. E começou a viver
sobretudo fora de casa.
Com Anália, Alberto discutia a
mistura das cores e a melhor
maneira de se obter um ocre
luminoso que não lembrasse - e aqui
ele hesitava na expressão, para não
ofender a sensibilidade da psicóloga -
enfim, que não se parecesse com
cocó de cavalo. Ela procurou
explorar aquela associação mais ou
menos directa que ele fazia sem dar
por isso entre todas as tonalidades
do castanho e as fezes do cavalo, e
daí a um nada, já estavam a falar do
pai de Alberto, que agora aparecia a
seu filho de forma muito diversa
daquela com que o despachara numa
das primeiras sessões de terapia.
Onde estivera um patriarca austero e
firme,isolado e indiferente aos
afectos, surgia agora um homem
tímido e tíbio, preocupado com a
sobrevivência da família e submetido
ao terror dos ataques de fúria do seu
chefe, um homem terrível, a rondar o
criminoso, que seria internado no
final da vida. Até fisicamente o pai de
Alberto se alterara: o peito de ferro e
as costas direitas deram lugar a um
personagem quase chaplinesco, de
longos pés e engraçada maneira de
andar.
Numa tarde de sábado, em que
Alberto já organizara e arquivara os
desenhos que os pequenos gémeos
tinham produzido na semana anterior
e se preparava para começar a
pintar, Érnia entrou no escritório
trazendo pela mão Manuel António
Pinto.
- Quero que conheças uma pessoa...
É o Manel ... - disse ela, e foi a
primeira vez que Alberto a viu pouco
à-vontade.
- Olá, Manel - disse Alberto, com um
tal sentimento de irrrealidade, que se
esqueceu da mão com o pincel,
suspensa a caminho da água.
- Já nos conhecemos - disse o
colega.
A enorme altura e o volume
considerável de Manuel António Pinto
atravessaram o escritório de Alberto
para se postarem diante do quadro
abstracto. Érnia e o marido ficaram a
aguardar a consequência.
- Foste tu que fizeste? - perguntou o
colosso. E, sem precisar de resposta
- Gosto. Gosto mesmo muito.
XICANDARINHA NA LENHA DO MUNDO
Xicandarinha na lenha
do mundo
Primeiro foi a carapinha branca que
despontou ali atrás do portão de
zinco. Relâmpago de emoção nos
nossos olhos. Corremos.
— Mamã! E o tio Dinasse! É o tio
Dinasse, mamã.
A mamã, lá atrás da casa,
certamente nem ouvia. Corpo
curvado para duas pranchas de
madeira, rebentava as mãos e o
panarício na água e sabão,
esfregando. Para brilhar, como ela
sempre dizia, quando nos mandava
repetir uma selha cheia de roupa e
que só pelo tempo que demorávamos
sabia se estava bem ou mal lavada.
— Tio Dinasse chegou, mamã! Tio
Dinasse chegou! Agora, eu, Mário e
Carlitos, os mais novos dos cinco, já
cercávamos e baralhávamos o
caminhar um tanto lento e cansado
do tio Dinasse. Mamã apareceu na
esquina da casa, sorriso feito e mãos
gotejando sobre o vestido molhado.
— Hoyo Hoyo Makwêju (1) —
virando-se depois para nós
— vão buscar uma cadeira para o tio,
depressa!
Zaragata. Todos queríamos
transportar a cadeira. Mamã
ameaçou-nos lá de longe debaixo da
sombra da abacateira para onde
encaminhara o tio Dinasse. Mesmo
ao lado, o barril de água dava mais
frescura ao lugar.
Era manhã de Dezembro, sábado e
estava quente. Tio Dinasse tirou um
lenço branco, imaculado, limpou o
rosto e sentou-se. Ao seu lado
pusemos também a maleta e um
grande embrulho envolto em papel
de caqui que ajudáramos a carregar
logo ele entrara. O embrulho era
grande, só agora é que reparávamos
bem no tamanho. Que seria?
À volta do tio e da mamã a
curiosidade explodia-nos na boca.
Porém, começara o cumprimento
tradicional, bem à maneira de
Salamanga.
O tio tinha chegado há uma semana
das minas. A doença do peito estava
a piorar. Tinha até baixado ao
hospital uma vez lá no Transvaal. Ele
agora já não tinha forças para
continuar a trabalhar.
Também os brancos disseram que
estava acabado e que era melhor
ficar na terra. A machamba, perto do
rio Maputo, dava bem, problemas só
com cheias e às vezes gafanhotos.
Os filhos estavam crescidos e o
mais velho fora trabalhar para
Durban. Rebeca, a mais nova, já
estava uma mulher, ajudava a mãe
em casa e no campo e qualquer dia
ia casar.
— Está aí, mana! E vocês aqui como
estão?
Agora era a vez de a mamã
cumprimentar — contando a sua
história.
O Silva, o papá, andava muito
doente, mesmo nesta hora não
estava ali porque fora ao hospital
tirar análises. A vida estava difícil.
Cinco filhos e o mais velho só tinha
doze anos. Mas tinha sorte,
gostavam de estudar. O dinheiro da
reforma do Silva é que era muito
pouco e ainda por cima tinha de
mandar uma parte para Portugal. O
que valia era a banca de peixe e
camarão no bazar da Baixa, que
sempre dava alguma coisa.
Começara também a vender
ximatana (2) e xicalabiça (3). Era
uma grande ajuda, mas o Silva
andava muito preocupado com
complicações que isso podia trazer
com a polícia. Eram proibidas as
nossas bebidas. Mas os fregueses
bebiam lá atrás da casa, no quintal.
O pior, mesmo, era o barulho que
faziam, pois do outro lado do caniço
era o muro da casa de D. Lucinda,
muito bisbilhoteira e capaz de alertar
a polícia. Mas o problema principal
era realmente a doença do velho.
— Se ele morrer, que vai ser de mim
e das crianças?
Irrequietos, não aguentávamos mais
a curiosidade. Que é que o tio tinha
trazido desta vez da África do Sul?
No ano passado fora um corte de
fazenda. Tínhamos feito calças para
o Natal, e desta vez?
Mamã e o tio já dialogavam
normalmente. Terminara o
cumprimento. O tio dizia qualquer
coisa sobre casar com brancos e
ainda por cima velhos e a mamã
argumentava: "Se tivesse sido
lobolada por aquele Jorge que está
preso, que seria de mim?"
Finalmente as mãos do tio Dinasse
dirigiram-se para o grande embrulho
forrado de caqui.
— Mana, desta vez trouxe uma
lembrança para toda a família. Era a
minha última viagem e quis comprar
uma coisa para durar muito e que
fosse bastante útil a vocês todos.
Primeiro começou a aparecer uma
pega enorme de cor preta, baça.
Como aquilo era grande! Que seria?
Depois um corpo bojudo de metal
brilhante começou a emergir daquele
papel castanho.
— Mamã! É uma xicandari...iiinha! —
gritou o Carlitos, o benjamim da casa
e aquele que mais tinha assimilado o
nosso luso-ronga suburbano.
Era de facto uma chaleira enorme, de
alumínio pesado. Nunca tínhamos
visto nada igual A mamã não se
continha de contente.
— Para quê gastar tanto dinheiro,
mano?!
O tio explicava que a chaleira era de
mais de 10 litros. Agora não faltaria
água quente para todos em casa. Até
o papá que gostava de mergulhar os
pés numa bacia nunca mais pediria
para aquecer mais água. A chaleira
era enorme, dava para tudo
— Esta xícandarinha não vou
conseguir levantar, mamã! — dizia o
Carilitos.
— Xícandarinha, não! Chaleira, meu
burro! — ripostava a mamã que,
falando com o tio Dinasse em ronga,
só nos autorizava o diálogo em
português e correcto!
IA sombra da abacateira já tinha
mudado c o papá não vinha Tio
Dinasse almoçou con-nosco tainha
frita com arroz "fogado". Ele não
bebia, só ucanhi, uma vez por ano,
para patlhar (4) com a família a
fertilidade da terra c as próximas
colheitas.
A xicandarinha estava ali, grande,
brilhante e convidativa. íamos
inaugurar? O fogareiro a carvão era
muito pequeno para ela. Melhor seria
arrumar três tijolos para um fogão de
lenha improvisado no chão. A lenha
suja muito, mas que fazer?
A mamã concordou. O papá havia de
perder aquele espectáculo do lume
lambendo pela primeira vez o corpo
da chaleira gigante.
Rápido, o fumo brotou forte e
espesso antes da chama. Mamã
tinha os olhos húmidos.
— Se calhar o Silva baixou, Dinasse!
O lume rompeu a fumarada.
Gritámos de alegria. Neste momento,
a Guida e o Eduardo, que tinham
estado em casa da tia Cecília,
chegaram. Mudos de emoção
contemplavam, também o
espectáculo. "É nossa?" "É nossa?" —
suas vozes em simultâneo bebiam o
bri-lho e as chamas.
— Não viram o pai? — era a mamã
com fumo nos olhos.
'fio Dinasse alvitrou que era muito
cedo. De qualquer maneira, se
baixasse, havia de avisar. Ele, aliás,
tinha de ir andando. Havia um
gasolina para a Catembe às cinco e
queria chegar a casa ainda naquele
dia. O último machimbombo para
Bela Vista, partia às 18 do Guachene.
Bocados de negro de fumo
começaram a pincelar fortemente o
corpo brilhante e gordo da
xicandarinha. Havia certamente um
pouco de madeira xilati (5) no meio
da lenha para fazer aquele fumo
danado.
— Fica para tomar chá, mano! A água
vai ferver já, não enchemos a
chaleira. Guida!! Vai pôr a mesa do
chá. Tira as chávenas novas do
armário da sala, ouviste?! Raul! Vai
comprar bolos ali na pastelaria do
Alto-Maé, depressa!
Tio Dinasse elogiou a nossa rapidez.
Em pouco tempo chá e bolos
estavam na mesa. Mas bonito, bonito
de verdade, foi quando a água da
xicandarinha começou a encher o
bule. A mamã agarrava a chaleira
com força. Parecia a água a sair da
torneira da casa da D. Lucinda. O
bule ficou cheio num instante. Água
para toda a vida, não havia dúvida.
Tomámos chá, orgulhosos e felizes.
Tio Dinasse esquivava-se bondoso,
aos nossos agradecimentos.
O papá chegou depois de o tio
Dinasse já ter saído.
— Queriam que eu baixasse hoje.
Neguei. Disseram para baixar na
segunda-feira. Mas segunda é dia 22
e eu quero passar as festas
convosco. Sempre passei o Natal e
Ano Novo em casa com a família.
Este ano vou passar também. O quê!
Chaleira nova? Mas destas não há
cá!
— Foi o tio Dinasse que trouxe, papá!
Foi o tio Dinasse!
Nossa cortina espessa de vozes
escondeu a angústia da mamã
sacudida pelas palavras do velho.
Uma xicandarinha imensa de dor
fervia dentro dela.
— Que será de mim, se este homem
me morre?!
De novo cheia, a xicandarinha
prestava-se ao segundo baptismo de
água e fogo.
Os olhos do papá e da mamã
lacrimejavam por dentro o lume da
vida.
— Puxa! Esta xicandarinha não fica
limpa! Este fumo sujo pegou e não
sai.
Era a semana do Mário na lavagem
da louça. A mamã, que chegara há
pouco do bazar, comandou:
— Tira cinza aí do fogareiro, junta
com areia e esfrega! Quero ver essa
chaleira limpa e brilhante como veio!
Mário mordeu um olhar cinzento
sobre a mamã, já agarrada às
panelas do almoço. Segunda-feira
era um dia horrível! Sobretudo para o
Mário, que entrava às 13 a ainda não
tinha feito os deveres. A cinza à
mistura com areia escorria pêlos
seus dedos frenéticos.
Junto à escada de três lanços, seu
lugar preferido, o grande Boby, fiel da
casa há muitos anos, assistia
bonacheirão ao fervilhar doméstico.
Ultimamente o Boby andava triste à
medida que a doença do papá
piorava. Pressentia tudo e tinha um
afecto especial pelo dono. Já uma
vez salvara o velho de um ataque
dos mabandido (6), não muito longe
de casa.
Mário acabou de lavar. Na base é
que o negro-de-fumo não cedia, nem
mesmo esfregando com palha de
coco. A xicandarinha do tio Dinasse
era verdadeiramente espectacular. O
problema era lavá-la todos os dias,
que, aí, a mamã não transigia.
No Natal e Ano Novo ela não parou
de trabalhar. Foram as festas mais
felizes que tive-mos, estas de 53
para 54. O papá até parecia que
tinha melhorado. Dera-nos mesmo
dinheiro para comprarmos foguetes
— ma'pachão — como nós dizíamos.
À meia-noite foi o próprio velho que
iniciou o foguetório, aliás como fazia
todos os anos, rebentando a bomba
de um escudo. Ribombava que nem
um canhão. Mas, deste lado da
cidade inflamável, para lá dos
foguetes, eram sobretudo as latas e
tambores que davam som à viragem
do ano.
Cedo descobrimos que a pólvora
tinha a mesma cor da cinza.
Naquela noite o papá brindou de uma
maneira esquisita: "Tenham juízo,
este é o último ano que estou
convosco, não sei se chegarei a
Fevereiro".
O rosto da mamã pareceu
repentinamente golpeado. Lágrimas,
a que o reflexo da luz na cortina
vermelha dava cor de sangue,
começaram a lavar sua face negra.
Papá aligeirou logo o ambiente
contando uma anedota. Contudo, nos
nossos peitos aflitos começaram a
explodir corações de pólvora, cinza e
areia.
(...)
Já era a segunda vez que enchíamos
a xicandarínha para o chá. Umas
cinquenta pessoas espalhavam-se
pelo quintal. As mulheres em
esteiras e os homens em bancos
compridos arranjados à pressa com
tijolos e enormes pranchas de
madeira. Servíamos chá e bolachas.
Conversava-se em voz baixa,
lamentando a mamã e o nosso
destino.
Era a cerimónia do sétimo dia do
papá Tal como ele previa, não
chegara a Fevereiro. No dia 30 de
madrugada mergulhou na grande
água do silêncio. Dois dias antes da
morte ainda falou, mas zangado. D.
Lucinda, a vizinha, entrara na
enfermaria perguntando se ele queria
um padre para se confessar. O velho
maçónico pô-la aos berros fora da
sala, para espanto de outros doentes.
Naquela madrugada de luto e quando
os gritos lancinantes da mamã se
transformavam cm dolorido lamento,
o velho Boby, companheiro fiel,
escavou um pequeno buraco junto à
escada e deitou-se de um modo
estranho. Quando ao meio da manhã
queríamos sacudi-lo do lugar vimos,
com espanto, que ele não se mexia.
Estava morto.
Fumo nas mangas curtas das
nossas camisas. Luto rigoroso para
a mamã. Tal como a xicandarínha,
fumo e fogo lambia-nos a vida.
Poucos, muito poucos ajudaram a
mamã neste transe, nem mesmo
seus parentes mais próximos e bem
providos. Algumas honrosas
excepções como sempre. Ana
Barnabé, quase tísica e muito pobre,
é que trouxe qualquer coisa para
ajudar nas despesas dos primeiros
dias. Tia Gumende, essa, foi
inexcedível. Também viúva e com
muitos filhos, não hesitou: "Vais com
as tuas crianças para minha casa. Eu
tenho de estar em Ressano Garcia e
assim tomas também conta da minha
família".
Estávamos acostumados à antiga
casa.
— Mamã! É preciso irmos morar
mais lá para baixo? Nós ajudamos a
mamã a trabalhar para pagar a
renda! — nossas vozes interrogavam
ansiosas e inocentes.
Macerada mas vigorosa, mamã
respondeu: "É lá onde vamos vencer
a vida". Nada mais disse.
A mudança para Minkhokweni foi
rápida. Júlia, a bonita Júlia, corpo
para muitos amores à noite e de dia
esforçada ajudante no pilão de milho
e meixoeira para a xicalabiça, foi
incansável no vaivém da mudança.
No último carregamento e sobre a
enorme xidjumba (7) que Júlia
transportava à cabeça lá ia a nossa
xicandarinha a caminho do sul das
nossas vidas. Erecta, asa e bico
agressi-vos, qual pássaro metálico, a
chaleira, já mais curtida pelo fogo e
fumo, ia desafiar novas lenhas sem
medo dos caçadores da vida.
Com mão de ferro, a mamã guiar-
nos-ia serena e irredutivelmente
contra os pântanos traiçoeiros de
Minkhokweni.
(...)
Rodopio grande nas areias de
Minkhokweni. Nós e a vida. Ladeira
enorme coberta de pamas (8) e
piteiras (9) onde, depois das chuvas
de Novembro, também despontavam
malmequeres. Rodopio nosso e da
mamã. Madrugada nas bancas do
bazar, em casa venda de xicalabiça e
ximantana até altas horas.
Naquele dia dois dos mabandido
mais famosos em todo o
Minkhokweni bebiam. N'Wa-manarro
e Julião. O primeiro, grande e
musculoso, recém-saído do
calabouço, ganhara a alcunha pêlos
costumados e certeiros três socos
que derrubavam qualquer gigante. O
segundo, Julião de seu nome próprio,
mais baixo e magro, era esguio e
rapidíssimo no contra-ataque.
Músculos de aço, cabeçada
demoníaca.
Chuvisca. No arejado barracão
construído ao fundo do quintal, os
bebedores intrépidos provocam
directa e indirectamente os dois
inevitáveis contendores. O ceptro de
maior brigão e a quem as mulheres
temiam e se entregavam continuava
nas mãos de NTWa-manarro.
Rodopiou um desejo de violência nas
mãos nervosas dos dois mabandido.
Mamã advertiu que não queria
confusão dentro de casa. Pancadaria
só lá fora. Em vão. O álcool não res-
peita palavras. Entretanto, no meio
do barracão, em lume brando, a
xicandarinha. Agora, o seu corpo
enorme e enegrecido, apesar da
cinza e areia da lavagem quotidiana,
ostenta já uma asa desengonçada
pelo uso. Arquejante naquela
madrugada fria de Junho, a
xicandarinha ferve a sua água
indiferente ao fogo humano mais
forte que a circunda.
— Ha I Kine Júlio (10) — disse
N'Wamanarro, quando Dindinde, viola
querido em todo o bairro, desafiava
uma marrabenta, ritmo recente e
alucinante a dardejar caniços acesos
de desejo nas ancas voluptuosas
das mulheres.
Foi o pretexto para Julião, nervoso e
espectante. Júlia era bonita. Seu
corpo ainda jovem devia ser mais
saboroso que massala (11) madura.
Rodopiou um impulso irresistível no
peito do Julião. "Quem dança com ela
sou eu!". Com o seu braço de aço
afasta a reboliça anca de Júlia que
ondulava provocantemente em
N'Wamanarro.
Violento, o grande combate
começava.
A mamã, força e coragem
memoráveis, antevê o perigo de uma
morte violenta acontecida em casa.
Empurra demolidora os dois brigões,
exigindo aos berros que larguem os
sinistros canivetes de ponta-e-mola.
Consegue, ninguém sabe como.
Mas o combate a soco e cabeçada
continua para durar. Duas joelhadas
tremendas de Julião derrubam o
gigante que cai estrepitosamente
sobre a nossa xicandarinha. Mas
água quente não queima corpo a
ferver.
Gritámos e incitámos os nossos
fregueses a ajudarem-nos a
empurrar os dois belicosos para fora
do quintal. Sacudidos pelo recente
exemplo da mamã, xibalos e
djimizanas (12) uniram-se no esforço
para os tirar.
Quando a claridade começou a
despontar por detrás dos eucaliptos
do "compound" de magaízas "Mann
Jorge" e já quase a 100 metros da
nossa casa, N'Wamanarro caiu
desfalecido junto a uma enorme
pama. Julião, bem esmurrado mas
feliz, olha vitorioso para a pequena
multidão que o admira. A partir
daquele momento os mabandido
tinham outro chefe.
No quintal da nossa casa, no meio do
barracão, a xicandarinha não ficou
incólume desta noite de rodopio.
Mais amolgada, tinha a asa solta. O
funileiro ficava longe e era caro.
Arames grossos, bem virados a
alicate, recolocaram a asa partida.
Muleta feia, mas funcional.
Ósculos de fogo em nós. Viajámos
sonâmbulos entre o trabalho e os
livros. Eduardo, o mais velho,
aleijado de uma perna por uma
injecção mal dada em criança, é
atacado pela zona, nome estranho a
rotular uma doença provocada por
sono a menos e "stress" (13),
conforme afirmavam alguns médicos
da época. Pouco depois é a mamã
que cai de cama com a mesma
doença.
Agora são os nossos olhos que
ardem mesmo sem o fumo subindo
do fogão da xicandarinha. Coitada da
nossa chaleira! Corpo marcado,
sofrido, mas sempre imprescindível.
Ah! Grande tio Dinasse, pouco durou
para saborear de novo o chá da sua
oferta.
Morávamos em nova casa. Desta
vez nossa, nossa mesmo, construída
em frente à da maravilhosa tia
Gumende. Para a erguer, tivemos de
abrir à catanada um terreno então
impenetrável de piteiras e micaias.
Piores foram as cobras, bem
venenosas, a disputar o espaço.
Uma até mordeu a mamã.
Apavorados e estupefactos vimos a
nossa velha apenas a espremer a
mão mordida e ir lavá-la com sabão.
Nada lhe aconteceu. Estava vacinada
contra os ofídios. Poderosos e
milenares antídotos, estas vacinas
fabricadas pêlos nossos nhangas
(14)!
Infalíveis contra cobras, doenças
várias e até espíritos malignos da
nossa ancestralidade ronga.
Depois da zona veio o tifo. Só a
mamã é que apanhou e sobreviveu.
Em casa a vida não parou neste
intervalo de corpos doentes. Apenas
uma vez abrandámos, remoídos de
angústia. Tinham-nos roubado a
xicandarinha!
Desengonçada, já velha mas sempre
operacional, ela ainda causava inveja
pelo seu tamanho e resistência.
Quem nos roubara?
Metade de Minkhokweni conhecia a
xicandarinha. O alerta foi geral.
Fregueses habituais, vizinhos,
prostitutas e mabandido prometeram
averiguar. Nossos amigos das
futeboladas de fím-de-tarde, desde o
Babá, mulherengo mas sempre
prestável, até aos Leong, filhos do
cantineiro chinês do bairro, foram
devidamente avisados.
Ao fim do terceiro dia a boa nova
chegou. A xicandarinha fora
finalmente descoberta. Júlia, a
incansável Júlia, rosto já a enrugar
prematuramente, boca queimada a
álcool e mulala, descobriu a
xicandarinha em casa de Ximatana.
Assim chamado por preferir esta
bebida mais reservada a mulheres,
Ximatana era estivador-carregador
nas horas vagas, pois em tempo
inteiro ocupava-se especialmente da
visita às "barras" (15), copo na mão,
sempre sequioso, roubando amiúde
para sustentar o vício.
O pessoal queria castigá-lo
severamente. Não deixámos. Dois
meses sem poder beber em nossa
casa era um bom castigo. Castigo
grande para Ximatana que deixaria
de saborear uma bebida melhor
fabricada e, sobretudo, a
possibilidade de beber fiado quando
na bolsa lhe escasseassem as
quinhentas.
(...)
Tal como a xicandarinha, resistente
mas envelhecida, a mamã buscava
mais forças no próprio trabalho
depois de cada internamento no
hospital ou dos últimos recursos dos
nossos nhangas.
A Guida começou a namorar às
escondidas. Com um maguerre,
como diziam os vizinhos, referindo-
se ao operário branco rondando o
quintal e procurando espaço para
meter a mão na mulata jeitosa.
Certo dia mamã não esteve com
contemplações. Avisada das
investidas do intruso, mandou encher
a xícandarinha. Retirando a tampa
larga quando fervia e segurando
firme a chaleira pelo gargalo e base
com um saco de serapilheira
sincronizou bem a passagem do
conquistador. A água saltou e ouviu-
se um grito surpreso e dolorido do
outro lado do quintal. Alvo atingido. A
xicandarinha mais uma vez
funcionara em pleno. Também era
uma arma, estava provado.
Mas de nada valeu esta guerra
particular da mamã. A água quente
da xicandarinha só fez ferver mais o
coração apaixonado do operário que
após dois anos de muitas peripécias
acabou por casar com a mana
mulata dos seus olhos.
Em casa as noites continuavam
agitadas. Num sábado luarento a
situação explodiu a ferro e fogo. O
quintal estava apinhado de gente
bebendo. Num canto xibalos
entoavam canções e danças de
Inhambane ao compasso de um
bandilhado com dedos exímios por
um velho tocador. Mais próximo do
zinco da casa, um gira-discos a pilha
lançava para o ar o som trepidante
de um novo ritmo, a madjuba.
De repente uma patrulha a cavalo
irrompe pela porta derrubando parte
do quintal de caniço. Gera-se,
confusão, susto e ódio entre aquela
centena de farristas bêbados de
sábado.
Nas mãos da policia montada brilham
espadas. Tentam arregimentar as
pessoas num canto para depois as
prender. Já passava das nove horas.
Começa uma luta encarniçada pela
fuga. Homens e cavalos engalfinham-
se furando o caniço à cabeçada e
coice. Alguns polícias caem dos
cavalos mas, temerários, aventuram-
se a pé em perseguição dos fugi-
tivos. Azar. Vários foram atirados de
repente para o meio das piteiras.
Dentro do quintal a batalha
continuava. Um dos cavalos,
esporeado à toa por um polícia
enraivecido, derruba a cozinha. Os
cascos ferrados da besta rebentam
panelas de barro, quebram tachos e
amolgam a nossa xicandarinha.
Stefana, pequeno gigante empurra-
zorras do C. F. M., escoiceado,
sevícia o cavalo que o maltratou. O
polícia estatela-se. Ouvem-se dois
tiros. A batalha ganha sangue.
Stefana escapa de uma morte certa
por milagre, aliás, por nervosismo do
polícia desvairado. Mas uma das
balas ainda lhe furou de raspão um
dos braços.
As pessoas, mesmo espadeiradas,
não se queriam deixar prender. De
cerca de uma cen-tena que eram, a
polícia só conseguiu arrebanhar
umas quinze. Foi com elas que
fomos parar à esquadra.
A situação desta vez era grave.
Houvera confronto, inadmissível para
os polícias. Todavia, uma boa estrela
brilhou bem na altura na esquadra da
polícia montada. Já de madrugada e
quando os processos estavam a
crescer na mesa dos guardas de
serviço, apareceu um velho
comissário da polícia que era um
antigo amigo do papá. Noutros
tempos houve qualquer favor que o
pai lhe fez aquando funcionário da
Alfândega, recordou-se depois a
mamã. O comissário lá nos safou de
apuros em memória do velho. A nós
e aos restantes presos. Afinal...
Todos trabalhavam e não tinham sido
presos na rua depois das nove...!
Quando se quer, as leis moldam-se
ao sabor dos chefes...
De regresso a casa, já manhã alta, o
dia revelou cruamente os estragos.
Quintal e cozi-nha derrubados,
animais mortos na capoeira
escangalhada. Quando erguemos as
chapas derrubadas da cozinha os
nossos olhos pararam. No meio dos
tachos destruídos, a nossa
escoiceada xicandarinha mostrava
bem visíveis, ao meio do seu bojo
enegrecido, dois furos de bala. Um
grande silêncio cresceu em nós.
Agora também as balas.
A xicandarinha só poderia ferver
água com menos de metade da sua
capacidade. Osculada por outro fogo
que não o da lenha, não a quisemos
contudo pôr fora de combate.
Continuaria a funcionar. Era preciso
moderar, mas não parar.
Há dois dias que as chuvas não
paravam. Torrenciais, pareciam uma
cortina de chumbo líquido caindo
devastadoras. Chuvas de fome,
estas de Dezembro a Janeiro, meses
que em casa sempre pressagiaram
doenças e morte.
As águas, em correntes impetuosas,
juntavam-se na zona alta da Malanga
e galgavam medonhas até
Minkhokweni. Iniciámos um dique
protector à volta da casa. Suor e
sangue estavam ali naquelas
paredes de madeira e zinco. Não
deixaríamos que fossem engolidas
de qualquer maneira!
No terceiro dia a situação agravou-
se. A rádio anunciou que se tratava
de uma depressão denominada
"Claude". Um vazio opressivo
pairava em toda a casa, agora silente
de fre-gueses. Aliás, desde as
últimas confusões, moderámos as
vendas, ao mesmo tempo que
adoptámos uma táctica de vigilância
de modo a despovoarmos o quintal
ao primeiro alerta, refreando assim o
ímpeto policial. Mas a água caindo
violenta sobre o telhado, que rangia
aos golpes de vento, aumentava-nos
a tensão pela impotência perante a
natureza.
— Nhandayeyoooô...! (16)
Nhandayeyoooô...! gritavam vozes
pedindo socorro no meio da noite.
Também cercados, nada podíamos
fazer. Já sobre o caniço do nosso
quintal e do outro lado das piteiras,
as águas em fúria rasgavam a terra
mole, abrindo gretas de vários
metros de profundidade, arrastando
toneladas de lodo e areia para lá da
ladeira, cobrindo a Rua das
Estâncias, saltando sobre o longo
muro gradeado dos C.F.M.,
assoreando, inundando e inutilizando
as linhas férreas.
A chuva continuava a cair sobre o
nosso silêncio. A rádio falava já em
grandes catástrofes no campo. Os
gritos de "Nhandayeyô!
Nhandayeyô!" tolhiam-nos de
angústia.
Finalmente no quinto dia as chuvas
amainaram. Investigando
cautelosamente, respirámos de alívio
ao ver a sapata de cimento da casa
incólume, mas à beira do abismo
cavado pelas águas. Igual sorte não
teve o quintal e a enorme cozinha
com despensa que tínhamos
construído em substituição da outra.
Desapareceram engolidas pela
enchurrada na noite do último dia da
depressão tropical. A desgraça
tocou a todos. Vizinhos nossos
tiveram pior sorte, perdendo tecto e
haveres.
Os velhos do lugar, abanando as
cabeças de carapinha alva,
afirmavam condoídos que era uma
grande desgraça, para logo a seguir
pressagiar convictos:
— A natureza veio avisar que muito
sangue e fogo vão correr na nossa
terra, muita gente vai morrer!
Solidariedade foi enorme entre os
pobres e remediados de
Minkhokweni na reparação dos
estragos. Porém, os tractores da
Câmara Municipal apenas
apareceram na Rua das Estâncias
para desassorear a estrada. Para os
nossos lados só surgiram meses
depois, mas sob a pressão e mando
dos abutres das negociatas com
terrenos e prédios de ren-dimento,
unhas afiadas para novos espaços.
— Mas onde ficou a xicandarinha? —
perguntou o Carlitos, já a tentar abrir
um caminho de travessia pela
enorme vala pluvial.
Guardada num canto da nova cozinha
acabou também por ser devorada
pelas águas em convulsão. Ninguém
mais a viu. Mesmo depois de os
tractores terem terraplanado toda
aquela zona, ela não apareceu.
As águas sepultaram definitivamente
a nossa xicandarinha no chão revolto
de Minkhok-weni.
Xicandarinha de fumo e fogo,
xicandarinha de água e vida,
xicandarinha pássaro e arma,
xicandarinha de sangue e balas, a
nossa xicandarinha libertou-se da
lenha do mundo oxidando-se nas
mesmas areias onde apodrecem os
homens.
Olhámo-nos apreensivos. A mamã,
meditativa, apenas nos disse o
mesmo que meses depois nos
lembraria quando um senhor de fato
e gravata, título de propriedade numa
mão e autorização camarária noutra,
nos intimava a desmantelar a nossa
casa do seu terreno.
— A xicandarinha não tinha braços
nem cabeça para se defender e lutar.
Nós temos, meus filhos. Coragem.
Amanhã começaremos nova vida.
10MAIS RICO DE AFRICA
Conheça as 10 personalidades
mais ricas (bilionários) do
continente africano, segundo a
famosa revista Forbes. A lista
original apresenta 50
personalidades onde a Nigéria
aparece com o maior número
de bilionários em África.
Confira!
1. Aliko Dangote
Idade: 56
País: Nigéria
Fortuna: $20,800 M
Aliko Dangote
2. Johann Rupert &
family
Idade: 63
País: África do Sul
Fortuna: $7,900 M
Johann Rupert & family
3. Nicky Oppenheimer
& family
Idade: 68
País: África do Sul
Fortuna: $6,600 M
Nicky Oppenheimer & family
4. Nassef Sawiris
Idade: 52
País: Egipto
Fortuna: $5,900 M
Nassef Sawiris
5. Mike Adenuga
Idade: 60
País: Nigeria
Fortuna: $4,600 M
Mike Adenuga
6. Christoffel Wiese
Idade: 72
País: África do Sul
Fortuna: $3,800 M
Christoffel Wiese
7. Isabel dos Santos
Idade: 40
País: Angola
Fortuna: $3,500 M
Isabel dos Santos
8. Issad Rebrab
Idade: 70
País: Argélia
Fortuna: $3,200 M
Issad Rebrab
9. Mohamed Mansour
Idade: 65
País: Egipto
Fortuna: $3,100 M
Mohamed Mansour
10. Othman Benjelloun
Idade: 81
País: Marrocos
Fortuna: $2,800 M
Othman Benjelloun
SONHOS
Se esta noite acordares e não
souberes onde estás, não te
preocupes. Apenas andas perdido
nos meus sonhos!
sexta-feira, 1 de maio de 2015
Felicidade
As pessoas mais felizes não têm as
melhores coisas. Elas sabem fazer o
melhor das oportunidades que
aparecem em seus caminhos.
Morte
Quando você nasceu, você estava
chorando e todas as pessoas ao seu
redor estavam sorrindo. Viva de um
modo que, ao morrer, você seja
aquele que esteja sorrindo enquanto
todos a sua volta estejam chorando.
Tudo o que já não é
A dor que já me não dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.http://arseniosamuelmunguambe.comunidades.net