Xicandarinha na lenha
do mundo
Primeiro foi a carapinha branca que
despontou ali atrás do portão de
zinco. Relâmpago de emoção nos
nossos olhos. Corremos.
— Mamã! E o tio Dinasse! É o tio
Dinasse, mamã.
A mamã, lá atrás da casa,
certamente nem ouvia. Corpo
curvado para duas pranchas de
madeira, rebentava as mãos e o
panarício na água e sabão,
esfregando. Para brilhar, como ela
sempre dizia, quando nos mandava
repetir uma selha cheia de roupa e
que só pelo tempo que demorávamos
sabia se estava bem ou mal lavada.
— Tio Dinasse chegou, mamã! Tio
Dinasse chegou! Agora, eu, Mário e
Carlitos, os mais novos dos cinco, já
cercávamos e baralhávamos o
caminhar um tanto lento e cansado
do tio Dinasse. Mamã apareceu na
esquina da casa, sorriso feito e mãos
gotejando sobre o vestido molhado.
— Hoyo Hoyo Makwêju (1) —
virando-se depois para nós
— vão buscar uma cadeira para o tio,
depressa!
Zaragata. Todos queríamos
transportar a cadeira. Mamã
ameaçou-nos lá de longe debaixo da
sombra da abacateira para onde
encaminhara o tio Dinasse. Mesmo
ao lado, o barril de água dava mais
frescura ao lugar.
Era manhã de Dezembro, sábado e
estava quente. Tio Dinasse tirou um
lenço branco, imaculado, limpou o
rosto e sentou-se. Ao seu lado
pusemos também a maleta e um
grande embrulho envolto em papel
de caqui que ajudáramos a carregar
logo ele entrara. O embrulho era
grande, só agora é que reparávamos
bem no tamanho. Que seria?
À volta do tio e da mamã a
curiosidade explodia-nos na boca.
Porém, começara o cumprimento
tradicional, bem à maneira de
Salamanga.
O tio tinha chegado há uma semana
das minas. A doença do peito estava
a piorar. Tinha até baixado ao
hospital uma vez lá no Transvaal. Ele
agora já não tinha forças para
continuar a trabalhar.
Também os brancos disseram que
estava acabado e que era melhor
ficar na terra. A machamba, perto do
rio Maputo, dava bem, problemas só
com cheias e às vezes gafanhotos.
Os filhos estavam crescidos e o
mais velho fora trabalhar para
Durban. Rebeca, a mais nova, já
estava uma mulher, ajudava a mãe
em casa e no campo e qualquer dia
ia casar.
— Está aí, mana! E vocês aqui como
estão?
Agora era a vez de a mamã
cumprimentar — contando a sua
história.
O Silva, o papá, andava muito
doente, mesmo nesta hora não
estava ali porque fora ao hospital
tirar análises. A vida estava difícil.
Cinco filhos e o mais velho só tinha
doze anos. Mas tinha sorte,
gostavam de estudar. O dinheiro da
reforma do Silva é que era muito
pouco e ainda por cima tinha de
mandar uma parte para Portugal. O
que valia era a banca de peixe e
camarão no bazar da Baixa, que
sempre dava alguma coisa.
Começara também a vender
ximatana (2) e xicalabiça (3). Era
uma grande ajuda, mas o Silva
andava muito preocupado com
complicações que isso podia trazer
com a polícia. Eram proibidas as
nossas bebidas. Mas os fregueses
bebiam lá atrás da casa, no quintal.
O pior, mesmo, era o barulho que
faziam, pois do outro lado do caniço
era o muro da casa de D. Lucinda,
muito bisbilhoteira e capaz de alertar
a polícia. Mas o problema principal
era realmente a doença do velho.
— Se ele morrer, que vai ser de mim
e das crianças?
Irrequietos, não aguentávamos mais
a curiosidade. Que é que o tio tinha
trazido desta vez da África do Sul?
No ano passado fora um corte de
fazenda. Tínhamos feito calças para
o Natal, e desta vez?
Mamã e o tio já dialogavam
normalmente. Terminara o
cumprimento. O tio dizia qualquer
coisa sobre casar com brancos e
ainda por cima velhos e a mamã
argumentava: "Se tivesse sido
lobolada por aquele Jorge que está
preso, que seria de mim?"
Finalmente as mãos do tio Dinasse
dirigiram-se para o grande embrulho
forrado de caqui.
— Mana, desta vez trouxe uma
lembrança para toda a família. Era a
minha última viagem e quis comprar
uma coisa para durar muito e que
fosse bastante útil a vocês todos.
Primeiro começou a aparecer uma
pega enorme de cor preta, baça.
Como aquilo era grande! Que seria?
Depois um corpo bojudo de metal
brilhante começou a emergir daquele
papel castanho.
— Mamã! É uma xicandari...iiinha! —
gritou o Carlitos, o benjamim da casa
e aquele que mais tinha assimilado o
nosso luso-ronga suburbano.
Era de facto uma chaleira enorme, de
alumínio pesado. Nunca tínhamos
visto nada igual A mamã não se
continha de contente.
— Para quê gastar tanto dinheiro,
mano?!
O tio explicava que a chaleira era de
mais de 10 litros. Agora não faltaria
água quente para todos em casa. Até
o papá que gostava de mergulhar os
pés numa bacia nunca mais pediria
para aquecer mais água. A chaleira
era enorme, dava para tudo
— Esta xícandarinha não vou
conseguir levantar, mamã! — dizia o
Carilitos.
— Xícandarinha, não! Chaleira, meu
burro! — ripostava a mamã que,
falando com o tio Dinasse em ronga,
só nos autorizava o diálogo em
português e correcto!
IA sombra da abacateira já tinha
mudado c o papá não vinha Tio
Dinasse almoçou con-nosco tainha
frita com arroz "fogado". Ele não
bebia, só ucanhi, uma vez por ano,
para patlhar (4) com a família a
fertilidade da terra c as próximas
colheitas.
A xicandarinha estava ali, grande,
brilhante e convidativa. íamos
inaugurar? O fogareiro a carvão era
muito pequeno para ela. Melhor seria
arrumar três tijolos para um fogão de
lenha improvisado no chão. A lenha
suja muito, mas que fazer?
A mamã concordou. O papá havia de
perder aquele espectáculo do lume
lambendo pela primeira vez o corpo
da chaleira gigante.
Rápido, o fumo brotou forte e
espesso antes da chama. Mamã
tinha os olhos húmidos.
— Se calhar o Silva baixou, Dinasse!
O lume rompeu a fumarada.
Gritámos de alegria. Neste momento,
a Guida e o Eduardo, que tinham
estado em casa da tia Cecília,
chegaram. Mudos de emoção
contemplavam, também o
espectáculo. "É nossa?" "É nossa?" —
suas vozes em simultâneo bebiam o
bri-lho e as chamas.
— Não viram o pai? — era a mamã
com fumo nos olhos.
'fio Dinasse alvitrou que era muito
cedo. De qualquer maneira, se
baixasse, havia de avisar. Ele, aliás,
tinha de ir andando. Havia um
gasolina para a Catembe às cinco e
queria chegar a casa ainda naquele
dia. O último machimbombo para
Bela Vista, partia às 18 do Guachene.
Bocados de negro de fumo
começaram a pincelar fortemente o
corpo brilhante e gordo da
xicandarinha. Havia certamente um
pouco de madeira xilati (5) no meio
da lenha para fazer aquele fumo
danado.
— Fica para tomar chá, mano! A água
vai ferver já, não enchemos a
chaleira. Guida!! Vai pôr a mesa do
chá. Tira as chávenas novas do
armário da sala, ouviste?! Raul! Vai
comprar bolos ali na pastelaria do
Alto-Maé, depressa!
Tio Dinasse elogiou a nossa rapidez.
Em pouco tempo chá e bolos
estavam na mesa. Mas bonito, bonito
de verdade, foi quando a água da
xicandarinha começou a encher o
bule. A mamã agarrava a chaleira
com força. Parecia a água a sair da
torneira da casa da D. Lucinda. O
bule ficou cheio num instante. Água
para toda a vida, não havia dúvida.
Tomámos chá, orgulhosos e felizes.
Tio Dinasse esquivava-se bondoso,
aos nossos agradecimentos.
O papá chegou depois de o tio
Dinasse já ter saído.
— Queriam que eu baixasse hoje.
Neguei. Disseram para baixar na
segunda-feira. Mas segunda é dia 22
e eu quero passar as festas
convosco. Sempre passei o Natal e
Ano Novo em casa com a família.
Este ano vou passar também. O quê!
Chaleira nova? Mas destas não há
cá!
— Foi o tio Dinasse que trouxe, papá!
Foi o tio Dinasse!
Nossa cortina espessa de vozes
escondeu a angústia da mamã
sacudida pelas palavras do velho.
Uma xicandarinha imensa de dor
fervia dentro dela.
— Que será de mim, se este homem
me morre?!
De novo cheia, a xicandarinha
prestava-se ao segundo baptismo de
água e fogo.
Os olhos do papá e da mamã
lacrimejavam por dentro o lume da
vida.
— Puxa! Esta xicandarinha não fica
limpa! Este fumo sujo pegou e não
sai.
Era a semana do Mário na lavagem
da louça. A mamã, que chegara há
pouco do bazar, comandou:
— Tira cinza aí do fogareiro, junta
com areia e esfrega! Quero ver essa
chaleira limpa e brilhante como veio!
Mário mordeu um olhar cinzento
sobre a mamã, já agarrada às
panelas do almoço. Segunda-feira
era um dia horrível! Sobretudo para o
Mário, que entrava às 13 a ainda não
tinha feito os deveres. A cinza à
mistura com areia escorria pêlos
seus dedos frenéticos.
Junto à escada de três lanços, seu
lugar preferido, o grande Boby, fiel da
casa há muitos anos, assistia
bonacheirão ao fervilhar doméstico.
Ultimamente o Boby andava triste à
medida que a doença do papá
piorava. Pressentia tudo e tinha um
afecto especial pelo dono. Já uma
vez salvara o velho de um ataque
dos mabandido (6), não muito longe
de casa.
Mário acabou de lavar. Na base é
que o negro-de-fumo não cedia, nem
mesmo esfregando com palha de
coco. A xicandarinha do tio Dinasse
era verdadeiramente espectacular. O
problema era lavá-la todos os dias,
que, aí, a mamã não transigia.
No Natal e Ano Novo ela não parou
de trabalhar. Foram as festas mais
felizes que tive-mos, estas de 53
para 54. O papá até parecia que
tinha melhorado. Dera-nos mesmo
dinheiro para comprarmos foguetes
— ma'pachão — como nós dizíamos.
À meia-noite foi o próprio velho que
iniciou o foguetório, aliás como fazia
todos os anos, rebentando a bomba
de um escudo. Ribombava que nem
um canhão. Mas, deste lado da
cidade inflamável, para lá dos
foguetes, eram sobretudo as latas e
tambores que davam som à viragem
do ano.
Cedo descobrimos que a pólvora
tinha a mesma cor da cinza.
Naquela noite o papá brindou de uma
maneira esquisita: "Tenham juízo,
este é o último ano que estou
convosco, não sei se chegarei a
Fevereiro".
O rosto da mamã pareceu
repentinamente golpeado. Lágrimas,
a que o reflexo da luz na cortina
vermelha dava cor de sangue,
começaram a lavar sua face negra.
Papá aligeirou logo o ambiente
contando uma anedota. Contudo, nos
nossos peitos aflitos começaram a
explodir corações de pólvora, cinza e
areia.
(...)
Já era a segunda vez que enchíamos
a xicandarínha para o chá. Umas
cinquenta pessoas espalhavam-se
pelo quintal. As mulheres em
esteiras e os homens em bancos
compridos arranjados à pressa com
tijolos e enormes pranchas de
madeira. Servíamos chá e bolachas.
Conversava-se em voz baixa,
lamentando a mamã e o nosso
destino.
Era a cerimónia do sétimo dia do
papá Tal como ele previa, não
chegara a Fevereiro. No dia 30 de
madrugada mergulhou na grande
água do silêncio. Dois dias antes da
morte ainda falou, mas zangado. D.
Lucinda, a vizinha, entrara na
enfermaria perguntando se ele queria
um padre para se confessar. O velho
maçónico pô-la aos berros fora da
sala, para espanto de outros doentes.
Naquela madrugada de luto e quando
os gritos lancinantes da mamã se
transformavam cm dolorido lamento,
o velho Boby, companheiro fiel,
escavou um pequeno buraco junto à
escada e deitou-se de um modo
estranho. Quando ao meio da manhã
queríamos sacudi-lo do lugar vimos,
com espanto, que ele não se mexia.
Estava morto.
Fumo nas mangas curtas das
nossas camisas. Luto rigoroso para
a mamã. Tal como a xicandarínha,
fumo e fogo lambia-nos a vida.
Poucos, muito poucos ajudaram a
mamã neste transe, nem mesmo
seus parentes mais próximos e bem
providos. Algumas honrosas
excepções como sempre. Ana
Barnabé, quase tísica e muito pobre,
é que trouxe qualquer coisa para
ajudar nas despesas dos primeiros
dias. Tia Gumende, essa, foi
inexcedível. Também viúva e com
muitos filhos, não hesitou: "Vais com
as tuas crianças para minha casa. Eu
tenho de estar em Ressano Garcia e
assim tomas também conta da minha
família".
Estávamos acostumados à antiga
casa.
— Mamã! É preciso irmos morar
mais lá para baixo? Nós ajudamos a
mamã a trabalhar para pagar a
renda! — nossas vozes interrogavam
ansiosas e inocentes.
Macerada mas vigorosa, mamã
respondeu: "É lá onde vamos vencer
a vida". Nada mais disse.
A mudança para Minkhokweni foi
rápida. Júlia, a bonita Júlia, corpo
para muitos amores à noite e de dia
esforçada ajudante no pilão de milho
e meixoeira para a xicalabiça, foi
incansável no vaivém da mudança.
No último carregamento e sobre a
enorme xidjumba (7) que Júlia
transportava à cabeça lá ia a nossa
xicandarinha a caminho do sul das
nossas vidas. Erecta, asa e bico
agressi-vos, qual pássaro metálico, a
chaleira, já mais curtida pelo fogo e
fumo, ia desafiar novas lenhas sem
medo dos caçadores da vida.
Com mão de ferro, a mamã guiar-
nos-ia serena e irredutivelmente
contra os pântanos traiçoeiros de
Minkhokweni.
(...)
Rodopio grande nas areias de
Minkhokweni. Nós e a vida. Ladeira
enorme coberta de pamas (8) e
piteiras (9) onde, depois das chuvas
de Novembro, também despontavam
malmequeres. Rodopio nosso e da
mamã. Madrugada nas bancas do
bazar, em casa venda de xicalabiça e
ximantana até altas horas.
Naquele dia dois dos mabandido
mais famosos em todo o
Minkhokweni bebiam. N'Wa-manarro
e Julião. O primeiro, grande e
musculoso, recém-saído do
calabouço, ganhara a alcunha pêlos
costumados e certeiros três socos
que derrubavam qualquer gigante. O
segundo, Julião de seu nome próprio,
mais baixo e magro, era esguio e
rapidíssimo no contra-ataque.
Músculos de aço, cabeçada
demoníaca.
Chuvisca. No arejado barracão
construído ao fundo do quintal, os
bebedores intrépidos provocam
directa e indirectamente os dois
inevitáveis contendores. O ceptro de
maior brigão e a quem as mulheres
temiam e se entregavam continuava
nas mãos de NTWa-manarro.
Rodopiou um desejo de violência nas
mãos nervosas dos dois mabandido.
Mamã advertiu que não queria
confusão dentro de casa. Pancadaria
só lá fora. Em vão. O álcool não res-
peita palavras. Entretanto, no meio
do barracão, em lume brando, a
xicandarinha. Agora, o seu corpo
enorme e enegrecido, apesar da
cinza e areia da lavagem quotidiana,
ostenta já uma asa desengonçada
pelo uso. Arquejante naquela
madrugada fria de Junho, a
xicandarinha ferve a sua água
indiferente ao fogo humano mais
forte que a circunda.
— Ha I Kine Júlio (10) — disse
N'Wamanarro, quando Dindinde, viola
querido em todo o bairro, desafiava
uma marrabenta, ritmo recente e
alucinante a dardejar caniços acesos
de desejo nas ancas voluptuosas
das mulheres.
Foi o pretexto para Julião, nervoso e
espectante. Júlia era bonita. Seu
corpo ainda jovem devia ser mais
saboroso que massala (11) madura.
Rodopiou um impulso irresistível no
peito do Julião. "Quem dança com ela
sou eu!". Com o seu braço de aço
afasta a reboliça anca de Júlia que
ondulava provocantemente em
N'Wamanarro.
Violento, o grande combate
começava.
A mamã, força e coragem
memoráveis, antevê o perigo de uma
morte violenta acontecida em casa.
Empurra demolidora os dois brigões,
exigindo aos berros que larguem os
sinistros canivetes de ponta-e-mola.
Consegue, ninguém sabe como.
Mas o combate a soco e cabeçada
continua para durar. Duas joelhadas
tremendas de Julião derrubam o
gigante que cai estrepitosamente
sobre a nossa xicandarinha. Mas
água quente não queima corpo a
ferver.
Gritámos e incitámos os nossos
fregueses a ajudarem-nos a
empurrar os dois belicosos para fora
do quintal. Sacudidos pelo recente
exemplo da mamã, xibalos e
djimizanas (12) uniram-se no esforço
para os tirar.
Quando a claridade começou a
despontar por detrás dos eucaliptos
do "compound" de magaízas "Mann
Jorge" e já quase a 100 metros da
nossa casa, N'Wamanarro caiu
desfalecido junto a uma enorme
pama. Julião, bem esmurrado mas
feliz, olha vitorioso para a pequena
multidão que o admira. A partir
daquele momento os mabandido
tinham outro chefe.
No quintal da nossa casa, no meio do
barracão, a xicandarinha não ficou
incólume desta noite de rodopio.
Mais amolgada, tinha a asa solta. O
funileiro ficava longe e era caro.
Arames grossos, bem virados a
alicate, recolocaram a asa partida.
Muleta feia, mas funcional.
Ósculos de fogo em nós. Viajámos
sonâmbulos entre o trabalho e os
livros. Eduardo, o mais velho,
aleijado de uma perna por uma
injecção mal dada em criança, é
atacado pela zona, nome estranho a
rotular uma doença provocada por
sono a menos e "stress" (13),
conforme afirmavam alguns médicos
da época. Pouco depois é a mamã
que cai de cama com a mesma
doença.
Agora são os nossos olhos que
ardem mesmo sem o fumo subindo
do fogão da xicandarinha. Coitada da
nossa chaleira! Corpo marcado,
sofrido, mas sempre imprescindível.
Ah! Grande tio Dinasse, pouco durou
para saborear de novo o chá da sua
oferta.
Morávamos em nova casa. Desta
vez nossa, nossa mesmo, construída
em frente à da maravilhosa tia
Gumende. Para a erguer, tivemos de
abrir à catanada um terreno então
impenetrável de piteiras e micaias.
Piores foram as cobras, bem
venenosas, a disputar o espaço.
Uma até mordeu a mamã.
Apavorados e estupefactos vimos a
nossa velha apenas a espremer a
mão mordida e ir lavá-la com sabão.
Nada lhe aconteceu. Estava vacinada
contra os ofídios. Poderosos e
milenares antídotos, estas vacinas
fabricadas pêlos nossos nhangas
(14)!
Infalíveis contra cobras, doenças
várias e até espíritos malignos da
nossa ancestralidade ronga.
Depois da zona veio o tifo. Só a
mamã é que apanhou e sobreviveu.
Em casa a vida não parou neste
intervalo de corpos doentes. Apenas
uma vez abrandámos, remoídos de
angústia. Tinham-nos roubado a
xicandarinha!
Desengonçada, já velha mas sempre
operacional, ela ainda causava inveja
pelo seu tamanho e resistência.
Quem nos roubara?
Metade de Minkhokweni conhecia a
xicandarinha. O alerta foi geral.
Fregueses habituais, vizinhos,
prostitutas e mabandido prometeram
averiguar. Nossos amigos das
futeboladas de fím-de-tarde, desde o
Babá, mulherengo mas sempre
prestável, até aos Leong, filhos do
cantineiro chinês do bairro, foram
devidamente avisados.
Ao fim do terceiro dia a boa nova
chegou. A xicandarinha fora
finalmente descoberta. Júlia, a
incansável Júlia, rosto já a enrugar
prematuramente, boca queimada a
álcool e mulala, descobriu a
xicandarinha em casa de Ximatana.
Assim chamado por preferir esta
bebida mais reservada a mulheres,
Ximatana era estivador-carregador
nas horas vagas, pois em tempo
inteiro ocupava-se especialmente da
visita às "barras" (15), copo na mão,
sempre sequioso, roubando amiúde
para sustentar o vício.
O pessoal queria castigá-lo
severamente. Não deixámos. Dois
meses sem poder beber em nossa
casa era um bom castigo. Castigo
grande para Ximatana que deixaria
de saborear uma bebida melhor
fabricada e, sobretudo, a
possibilidade de beber fiado quando
na bolsa lhe escasseassem as
quinhentas.
(...)
Tal como a xicandarinha, resistente
mas envelhecida, a mamã buscava
mais forças no próprio trabalho
depois de cada internamento no
hospital ou dos últimos recursos dos
nossos nhangas.
A Guida começou a namorar às
escondidas. Com um maguerre,
como diziam os vizinhos, referindo-
se ao operário branco rondando o
quintal e procurando espaço para
meter a mão na mulata jeitosa.
Certo dia mamã não esteve com
contemplações. Avisada das
investidas do intruso, mandou encher
a xícandarinha. Retirando a tampa
larga quando fervia e segurando
firme a chaleira pelo gargalo e base
com um saco de serapilheira
sincronizou bem a passagem do
conquistador. A água saltou e ouviu-
se um grito surpreso e dolorido do
outro lado do quintal. Alvo atingido. A
xicandarinha mais uma vez
funcionara em pleno. Também era
uma arma, estava provado.
Mas de nada valeu esta guerra
particular da mamã. A água quente
da xicandarinha só fez ferver mais o
coração apaixonado do operário que
após dois anos de muitas peripécias
acabou por casar com a mana
mulata dos seus olhos.
Em casa as noites continuavam
agitadas. Num sábado luarento a
situação explodiu a ferro e fogo. O
quintal estava apinhado de gente
bebendo. Num canto xibalos
entoavam canções e danças de
Inhambane ao compasso de um
bandilhado com dedos exímios por
um velho tocador. Mais próximo do
zinco da casa, um gira-discos a pilha
lançava para o ar o som trepidante
de um novo ritmo, a madjuba.
De repente uma patrulha a cavalo
irrompe pela porta derrubando parte
do quintal de caniço. Gera-se,
confusão, susto e ódio entre aquela
centena de farristas bêbados de
sábado.
Nas mãos da policia montada brilham
espadas. Tentam arregimentar as
pessoas num canto para depois as
prender. Já passava das nove horas.
Começa uma luta encarniçada pela
fuga. Homens e cavalos engalfinham-
se furando o caniço à cabeçada e
coice. Alguns polícias caem dos
cavalos mas, temerários, aventuram-
se a pé em perseguição dos fugi-
tivos. Azar. Vários foram atirados de
repente para o meio das piteiras.
Dentro do quintal a batalha
continuava. Um dos cavalos,
esporeado à toa por um polícia
enraivecido, derruba a cozinha. Os
cascos ferrados da besta rebentam
panelas de barro, quebram tachos e
amolgam a nossa xicandarinha.
Stefana, pequeno gigante empurra-
zorras do C. F. M., escoiceado,
sevícia o cavalo que o maltratou. O
polícia estatela-se. Ouvem-se dois
tiros. A batalha ganha sangue.
Stefana escapa de uma morte certa
por milagre, aliás, por nervosismo do
polícia desvairado. Mas uma das
balas ainda lhe furou de raspão um
dos braços.
As pessoas, mesmo espadeiradas,
não se queriam deixar prender. De
cerca de uma cen-tena que eram, a
polícia só conseguiu arrebanhar
umas quinze. Foi com elas que
fomos parar à esquadra.
A situação desta vez era grave.
Houvera confronto, inadmissível para
os polícias. Todavia, uma boa estrela
brilhou bem na altura na esquadra da
polícia montada. Já de madrugada e
quando os processos estavam a
crescer na mesa dos guardas de
serviço, apareceu um velho
comissário da polícia que era um
antigo amigo do papá. Noutros
tempos houve qualquer favor que o
pai lhe fez aquando funcionário da
Alfândega, recordou-se depois a
mamã. O comissário lá nos safou de
apuros em memória do velho. A nós
e aos restantes presos. Afinal...
Todos trabalhavam e não tinham sido
presos na rua depois das nove...!
Quando se quer, as leis moldam-se
ao sabor dos chefes...
De regresso a casa, já manhã alta, o
dia revelou cruamente os estragos.
Quintal e cozi-nha derrubados,
animais mortos na capoeira
escangalhada. Quando erguemos as
chapas derrubadas da cozinha os
nossos olhos pararam. No meio dos
tachos destruídos, a nossa
escoiceada xicandarinha mostrava
bem visíveis, ao meio do seu bojo
enegrecido, dois furos de bala. Um
grande silêncio cresceu em nós.
Agora também as balas.
A xicandarinha só poderia ferver
água com menos de metade da sua
capacidade. Osculada por outro fogo
que não o da lenha, não a quisemos
contudo pôr fora de combate.
Continuaria a funcionar. Era preciso
moderar, mas não parar.
Há dois dias que as chuvas não
paravam. Torrenciais, pareciam uma
cortina de chumbo líquido caindo
devastadoras. Chuvas de fome,
estas de Dezembro a Janeiro, meses
que em casa sempre pressagiaram
doenças e morte.
As águas, em correntes impetuosas,
juntavam-se na zona alta da Malanga
e galgavam medonhas até
Minkhokweni. Iniciámos um dique
protector à volta da casa. Suor e
sangue estavam ali naquelas
paredes de madeira e zinco. Não
deixaríamos que fossem engolidas
de qualquer maneira!
No terceiro dia a situação agravou-
se. A rádio anunciou que se tratava
de uma depressão denominada
"Claude". Um vazio opressivo
pairava em toda a casa, agora silente
de fre-gueses. Aliás, desde as
últimas confusões, moderámos as
vendas, ao mesmo tempo que
adoptámos uma táctica de vigilância
de modo a despovoarmos o quintal
ao primeiro alerta, refreando assim o
ímpeto policial. Mas a água caindo
violenta sobre o telhado, que rangia
aos golpes de vento, aumentava-nos
a tensão pela impotência perante a
natureza.
— Nhandayeyoooô...! (16)
Nhandayeyoooô...! gritavam vozes
pedindo socorro no meio da noite.
Também cercados, nada podíamos
fazer. Já sobre o caniço do nosso
quintal e do outro lado das piteiras,
as águas em fúria rasgavam a terra
mole, abrindo gretas de vários
metros de profundidade, arrastando
toneladas de lodo e areia para lá da
ladeira, cobrindo a Rua das
Estâncias, saltando sobre o longo
muro gradeado dos C.F.M.,
assoreando, inundando e inutilizando
as linhas férreas.
A chuva continuava a cair sobre o
nosso silêncio. A rádio falava já em
grandes catástrofes no campo. Os
gritos de "Nhandayeyô!
Nhandayeyô!" tolhiam-nos de
angústia.
Finalmente no quinto dia as chuvas
amainaram. Investigando
cautelosamente, respirámos de alívio
ao ver a sapata de cimento da casa
incólume, mas à beira do abismo
cavado pelas águas. Igual sorte não
teve o quintal e a enorme cozinha
com despensa que tínhamos
construído em substituição da outra.
Desapareceram engolidas pela
enchurrada na noite do último dia da
depressão tropical. A desgraça
tocou a todos. Vizinhos nossos
tiveram pior sorte, perdendo tecto e
haveres.
Os velhos do lugar, abanando as
cabeças de carapinha alva,
afirmavam condoídos que era uma
grande desgraça, para logo a seguir
pressagiar convictos:
— A natureza veio avisar que muito
sangue e fogo vão correr na nossa
terra, muita gente vai morrer!
Solidariedade foi enorme entre os
pobres e remediados de
Minkhokweni na reparação dos
estragos. Porém, os tractores da
Câmara Municipal apenas
apareceram na Rua das Estâncias
para desassorear a estrada. Para os
nossos lados só surgiram meses
depois, mas sob a pressão e mando
dos abutres das negociatas com
terrenos e prédios de ren-dimento,
unhas afiadas para novos espaços.
— Mas onde ficou a xicandarinha? —
perguntou o Carlitos, já a tentar abrir
um caminho de travessia pela
enorme vala pluvial.
Guardada num canto da nova cozinha
acabou também por ser devorada
pelas águas em convulsão. Ninguém
mais a viu. Mesmo depois de os
tractores terem terraplanado toda
aquela zona, ela não apareceu.
As águas sepultaram definitivamente
a nossa xicandarinha no chão revolto
de Minkhok-weni.
Xicandarinha de fumo e fogo,
xicandarinha de água e vida,
xicandarinha pássaro e arma,
xicandarinha de sangue e balas, a
nossa xicandarinha libertou-se da
lenha do mundo oxidando-se nas
mesmas areias onde apodrecem os
homens.
Olhámo-nos apreensivos. A mamã,
meditativa, apenas nos disse o
mesmo que meses depois nos
lembraria quando um senhor de fato
e gravata, título de propriedade numa
mão e autorização camarária noutra,
nos intimava a desmantelar a nossa
casa do seu terreno.
— A xicandarinha não tinha braços
nem cabeça para se defender e lutar.
Nós temos, meus filhos. Coragem.
Amanhã começaremos nova vida.
sábado, 2 de maio de 2015
XICANDARINHA NA LENHA DO MUNDO
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